Antes do reino ter reis. Antes de Tharok ser nome proibido. Antes da Flecha da Luz ser lenda…
…havia apenas um lago.
Um espelho calmo entre montanhas douradas, onde dois jovens sentavam lado a lado — sempre sobre a mesma pedra, como se o tempo ali escolhesse não passar.
Ela, de sangue nobre, criada entre os corredores frios de uma tia que chamava de tutora, mas que jamais lhe ensinou afeto.
Ele, um órfão sem brasão, forasteiro do norte, sobrevivente de uma invasão esquecida, carregando um nome que nunca contou inteiro a ninguém.
Erik e Cristal.
Foi à beira daquele lago que se viram pela primeira vez — como se o mundo tivesse segurado a respiração por um instante para que aquele encontro fosse possível.
Ela caçava. Ele patrulhava.
Mas naquele momento, ambos estavam apenas fugindo de seus próprios silêncios.
— O que você acha que acontece quando a gente morre? — ela perguntou uma vez, com os pés dentro d’água e o arco ainda nas costas.
Ele demorou a responder.
— Acho que a gente vira uma memória.
— E quem escolhe se a gente é lembrado? — insistiu.
Ele a olhou.
— Quem não teve coragem de nos esquecer.
A partir daquele dia, os encontros no lago se tornaram o refúgio dos dois. Falavam sobre o mundo, o medo, a solidão, e tudo o que ninguém ousava confessar dentro dos muros do castelo.
Erik ainda era apenas um soldado — treinado por um cavaleiro dourado que o acolheu quando chegou descalço a Sagittaria, fugindo do fogo que consumiu sua terra natal.
Cristal ainda era apenas uma nobre sem nome, ignorada em banquetes, observadora invisível nas sessões de voto de um governo que trocava de líderes mais rápido do que de bandeiras.
Mas juntos… começavam a se tornar algo mais.
A transformação veio no fogo. Numa patrulha nas montanhas ao sul, o exército dourado avistou chamas cortando a floresta. Erik, então já oficial, liderava a investida.
Foi lá que a viram: Cristal, sozinha diante de um dragão cuspidor de fogo, protegida apenas pelo instinto — e por um arco velho, retirado de uma caverna sagrada onde jamais devia ter entrado.
No auge da batalha, as chamas do dragão envolveram o arco. E quando ela o empunhou, uma luz saiu de seu peito. O símbolo de Sagittaria apareceu em sua armadura.
Todos viram.
A lenda nasceu ali.
Erik lutou ao lado dela. E nas brasas daquele dia, usou o ferro derretido para forjar a lâmina que, anos mais tarde, seria chamada Espada da Justiça.
Mas naquele momento…
Eles ainda eram apenas dois jovens que voltariam ao lago, de vez em quando, para falar sobre a morte. E sobre tudo aquilo que, aos olhos do mundo, ainda não estavam prontos para carregar.
Hoje, o lago ainda existe. Dizem que se você sentar na mesma pedra, poderá ouvir ecos de duas vozes falando baixinho. E uma delas ainda pergunta:
— Você acha que a gente vai ser lembrado?
Era uma noite enluarada no reino de Sagittaria, onde a magia e mistério entrelaçavam-se sob o céu estrelado. A princesa Cristal, de coração valente e espírito livre, aventurou-se pela densa floresta à procura de seu adorado tigre de estimação, um companheiro que tinha desaparecido misteriosamente mais cedo naquele dia. A floresta, embora familiar, parecia diferente à noite. As sombras dançavam entre as árvores, e o silêncio era cortado apenas pelo som do vento sussurrante.
Enquanto caminhava, Cristal foi subitamente envolvida por uma presença gélida. Um fantasma noturno, conhecido por sua habilidade de sugar almas dos incautos, surgiu diante dela. Com olhos que brilhavam com uma luz sobrenatural, o espectro avançou, lançando um ataque que começou a drenar a essência vital da princesa. Sentindo suas forças esvaírem-se, Cristal invocou em pensamento a proteção do signo de Sagitário, o guardião espiritual de sua linhagem.
No momento em que a esperança parecia se desvanecer, o cavaleiro místico de Sagitário, um centauro imponente e protetor do reino, emergiu das sombras. Empunhando um arco resplandecente, ele disparou uma flecha dourada que cortou o ar com um brilho celestial. Ao atingir o fantasma, a flecha dispersou a entidade maligna, libertando Cristal de seu aperto mortal.
Com o perigo afastado, a princesa foi envolta em uma aura de luz, revigorada pela proteção de seu protetor espiritual. Agradecida e aliviada, Cristal encontrou seu tigre logo em seguida, escondido mas são e salvo. Juntos, eles retornaram ao castelo, onde a noite tornara-se um testemunho da eterna vigilância e bravura do cavaleiro de Sagitário, guardião incansável da família real e do reino de Sagittaria.
Na noite mais escura do ciclo lunar, quando a luz da lua cheia pairava como um farol solitário sobre os pinheiros de Sagittaria, uma ameaça ancestral ergueu-se do abismo sombrio: Tharok, o devorador de luz, acompanhado de um exército de guerreiros das sombras.
As estrelas pareciam se apagar com sua aproximação.
Do alto das montanhas douradas, Princesa Cristal, envolta em sua armadura radiante, ergueu seu arco encantado. Ao seu lado, de joelhos, o Príncipe Erik, com sua espada flamejante cravada no solo sagrado, sussurrava preces à Deusa Astra, guardiã dos justos.
O Exército Dourado, posicionado atrás deles, esperava o sinal.
“Por Sagittaria!”, gritou Cristal, e a flecha celestial — banhada na luz da própria lua — voou em direção ao céu noturno, iluminando o campo de batalha como uma estrela cadente.
A flecha atingiu Tharok em pleno salto, impedindo sua investida sobre as tropas douradas. O impacto ecoou como um trovão divino, espalhando as trevas por entre as árvores.
Erik então ergueu-se, apontando sua espada para frente. “Avancem! Sagittaria jamais cairá!”
A batalha foi feroz, mas naquela noite, a “Dupla Poderosa”(Powerful Duo) — como passaram a ser chamados — não apenas protegeu seu povo, como selou uma nova lenda no coração do reino.
Desde então, sempre que a lua cheia brilha mais forte, dizem que é a Princesa Cristal mirando novamente, pronta para defender Sagittaria, com sua flecha da luz.
Na penumbra da Floresta de Thandor, onde nem mesmo a luz da lua ousava pousar por completo, a Princesa Cristal caminhava sozinha. O chamado havia sido silencioso — um sussurro que invadia seus sonhos, noite após noite, ecoando uma única palavra:
“Volte.”
Desde a batalha contra Tharok, Cristal vinha sendo assombrada por visões. Não de inimigos, mas de si mesma… ou de algo que a imitava. O povo falava de uma presença antiga que residia nas sombras daquela floresta, uma lenda esquecida: A Dama do Véu Sombrio, um espírito sem rosto, nascida da dor de uma rainha traída, condenada a vagar eternamente à procura de um corpo para habitar.
Guiada por sua coragem — e talvez por algo mais — Cristal adentrou o bosque envolta em sua armadura dourada, mas sem armas. Sentia que esta batalha não seria vencida com aço ou flechas.
A névoa rastejava entre os galhos como dedos de fantasmas. E então ela surgiu.
Alta. Silenciosa. Sem rosto.
A criatura parecia moldar-se a partir da própria escuridão, movendo-se sem ruídos, como se fosse um pensamento esquecido. Mesmo sem olhos, Cristal sentia ser observada. Mesmo sem boca, ouvia a voz em sua mente.
“Você tem luz demais...
Mas toda luz, um dia, se curva à sombra.”
Cristal caiu de joelhos. Um frio ancestral percorreu sua espinha. A floresta apertava. Sua visão escurecia.
Foi então que, em um lampejo de lembrança, ela murmurou:
“Sagitário protetor, eu te invoco...”
O brasão de sua armadura brilhou. Uma aura dourada rompeu o véu da escuridão por um breve segundo. A sombra gritou — não em som, mas em presença. Um grito que reverberava dentro da alma.
Com esforço, Cristal ergueu-se em direção a criatura.
“Eu sou Princesa de Sagittaria. E nenhuma escuridão, por mais antiga que seja, apagará minha luz.”
A Dama recuou, dissolvendo-se lentamente na névoa, como se banida por algo mais puro que qualquer feitiço.
Cristal não matou o espírito.
Ela o venceu com fé.
Ao retornar ao castelo, carregava mais do que uma nova cicatriz: trazia a certeza de que as trevas existem — mas a luz da flecha dourada, mesmo quando apagada, vive dentro de quem jamais se curva.
Desde então, dizem que a Dama do Véu ainda ronda a floresta...
Mas que jamais se aproximará novamente da linhagem da Flecha da Luz.
Durante a primeira noite do cerco de Tharok ao castelo de Sagittaria, os muros tremiam não apenas pelas investidas dos orcs, mas pelo silêncio que antecedia a investida final.
No alto da torre norte, entre sombras e tochas, Edinho, comandante da Guarda Real, observava o horizonte. Não com medo. Mas com peso.
A armadura dourada em seu peito brilhava como as dos demais soldados, mas por dentro, ele carregava cicatrizes mais profundas do que qualquer espada poderia deixar.
- Anos antes…
Edinho já havia vivido além das fronteiras de Sagittaria. Em sua juventude, lutou como mercenário nas terras de Valemor, uma região distante, onde conheceu Maelira — uma curandeira de olhos cor âmbar e voz como névoa. Eles viveram meses de paz em uma cabana à beira de um rio. Ele trocou sua espada por canções, por tempo, por amor.
Mas certa manhã, sem carta ou explicação, ele partiu.
Voltou a Sagittaria no mesmo dia em que o reino fora atacado por um dragão, e jurou nunca mais abandonar sua terra. Juntou-se ao Exército Dourado e rapidamente se tornou símbolo de disciplina e lealdade.
Mas nem mesmo a espada mais firme apaga a memória de uma escolha feita em silêncio.
- No presente…
Naquela noite, enquanto Cristal e Erik defendiam o portão leste com a flecha da luz e a espada celestial, Edinho segurava os muros do oeste, onde os guerreiros das sombras escalavam em silêncio.
Seu escudeiro, um jovem chamado Taen, perguntou:
“Senhor Edinho... você acha que sobrevivemos esta noite?”
Edinho apenas olhou o céu, e por um segundo, sua mente não estava ali. Estava à beira daquele rio em Valemor. Com ela.
“Não sei, garoto... Mas hoje, se cairmos, que seja protegendo quem amamos. Mesmo que nunca digamos isso em voz alta.”
De repente, o portão oeste explodiu. Os orcs avançaram como um enxame. Edinho tomou a frente, escudo em punho, espada na outra mão. Ele rugiu com uma fúria que vinha do arrependimento. Cada golpe que dava, cada inimigo que caía, era uma parte de si que ele perdoava.
Ele não lutava apenas por Sagittaria. Lutava por tudo que deixou para trás.
Horas depois, quando a alvorada finalmente rasgou a noite, os soldados do lado oeste ainda estavam vivos. Exaustos. Mas vivos.
Edinho caiu de joelhos, ofegante, sangrando, mas com o portão atrás dele intacto. Quando Taen perguntou se ele estava bem, Edinho apenas sorriu e respondeu:
“Não... mas estou inteiro. Pela primeira vez em muito tempo.”
Desde aquela noite, passou a se dizer que o portão oeste de Sagittaria nunca foi derrubado.
Não por magia. Não por milagre.
Mas porque um homem com um coração partido o segurava firme.
E esse homem se chamava Edinho.
Nas regiões esquecidas ao norte de Sagittaria, onde as ruínas de Varneth se erguem entre névoas eternas, a noite chegou sem aviso — e com ela, o silêncio que antecede as presenças que não respiram.
Mensageiros deixam de retornar de patrulhas na fronteira norte. Débi é convocada. Cristal, mesmo sem dizer diretamente, confia que só Débi conseguiria entrar e sair dali viva.
A princesa Cristal já sabia: há missões que não podem ser entregues a batalhões. Por isso, sem palavras, entregou a flecha de prata-luar a Débi.
Sem perguntas, Débi partiu.
Conhecida entre os povos das fronteiras como a Arqueira do Horizonte, Débi era mais do que uma guerreira. Era sombra entre sombras. Livre como o vento, leal como poucos, e silenciosa como um segredo bem guardado. Amiga da princesa desde os tempos em que ainda treinavam entre as árvores douradas, Débi agora caminhava sozinha, entre trilhas cobertas por folhas mortas e lembranças que insistiam em despertar.
Em seu peito, um único pensamento queimava baixo como brasa acesa:
Ele está bem?
Será que ainda espera?
Será que alguém, por fim, lhe contou sobre a guerra?
Mas ela não podia parar.
Ao alcançar as ruínas de Varneth, Débi não encontrou patrulheiros desaparecidos. Encontrou silêncio — e algo mais antigo que os muros: uma presença que se arrastava entre as pedras, como sombra viva, moldando-se à escuridão.
“Débi…”
"Você poderia ter sido feliz. Ter ficado.”
A criatura de sombra alimentava-se de memórias não vividas. Ela não tinha olhos, mas mostrava visões: uma casa pequena, risos na varanda, mãos calejadas apertando as dela.
Débi hesitou. Por um momento.
Então respirou fundo, ergueu o arco com firmeza e murmurou:
“Meu coração… tem dono.”
“Mas meu arco pertence a Sagittaria.”
Ao Débi atirar, a ponta da flecha prata-luar cortou o véu sombrio com um brilho frio e calmo. Ao atingir o núcleo da criatura, a luz reverberou pelas ruínas, dispersando a sombra como cinzas ao vento. As vozes cessaram.
Quando retornou à capital ao amanhecer, ninguém a viu chegar. Apenas um vigia notou, horas antes, uma figura encapuzada deixando uma flor branca sobre a cerca de uma casa simples, na margem do rio que corta o reino. Depois disso, ela partiu.
Alguns dizem que Débi nunca se detém. Que é feita de distância e dever. Mas a princesa Cristal sabe:
“Ela sempre volta. Não por nós. Mas por aquilo que ninguém mais vê.”
E assim, entre sombras e escolhas silenciosas, Débi selou mais uma lenda de Sagittaria. Uma que poucos ouvirão contar, mas que viverá em cada muralha protegida pela lealdade invisível.
Ninguém a chamava pelo nome.
E ninguém sabia se ela ainda o lembrava.
No Castelo Dourado, onde os títulos ecoam mais alto que as espadas, ela era conhecida apenas como Problemática — um apelido que nasceu da desconfiança, cresceu nos corredores e floresceu entre os camponeses que temem o que não entendem.
Ela era Arcana.
Não daquelas que encantam multidões com gestos e pirotecnias mas, da espécie rara que domina os elementos mágicos com a precisão de um bisturi e o silêncio de um veneno.
Cristal confiava nela como poucos. E isso, por si só, era perigoso.
Na terceira noite do ciclo sombrio, um mensageiro foi encontrado morto nos Jardins Suspensos. As cartas que ele carregava estavam intactas, seladas com o brasão real.
Mas o conteúdo… era traição.
Apenas três tiveram acesso àquelas informações: Cristal, General Tenaris e Problemática.
Ela não se defendeu, nem protestou. Pediu apenas um dia.
“Preciso do silêncio de vinte e quatro horas para descobrir quem sussurra mais alto do que o trono.”
Cristal aceitou.
Erik não confiava.
Enquanto o reino dormia, ela caminhou no castelo por salas esquecidas — corredores de pedra onde os quadros não têm olhos, mas veem tudo.
Desceu à Câmara da Lua Velada, onde estavam os arquivos selados por decreto da Rainha Lienn — a mesma que amaldiçoou o Conselho Velado décadas atrás.
Ali encontrou o que procurava: Registros falsificados, assinaturas duplicadas, mapas de movimentações militares com trajetos alterados.
Mas não era o conteúdo que a assustava.
Era a caligrafia no verso.
Pois era a de Cristal.
Ao descobrir isso, Problemática retornou ao salão superior sem chamar guardas e pediu uma audiência privada. Na penumbra da Sala dos Códigos, ela e a princesa ficaram frente a frente.
— Você escreveu isto? — perguntou ela, lançando os papéis sobre a mesa de ferro negro.
Cristal os encarou com o peso de quem já sabia o que seria revelado
— Eu escrevi, sim.
Mas não era traição. Era encenação. Uma armadilha. Uma pista falsa para atrair o traidor.
E funcionou.
Na última página dos registros, entre os rabiscos apagados, havia um nome reaparecendo sob a tinta mágica.
Tenaris.
No dia seguinte, o general caiu em desgraça. Não com alarde. Mas com silêncio. Seu nome foi retirado dos quadros da história. E sua ausência, jamais explicada.
No campo, os camponeses sussurraram:
“ — A Arcana sabe demais.”
“ — Um dia, ela trairá também.”
“ — Ela fala com trovões e escuta o que os vivos não dizem.”
Mas no castelo, Cristal disse apenas uma frase, diante de Erik:
“ — O reino precisa de espadas para proteger suas muralhas e de sombras para proteger sua verdade.“
E assim, Problemática permaneceu, observando, vigiando e esperando o próximo silêncio a ser quebrado.
Nas ruínas esquecidas de Thandor, onde o musgo cresce sobre o que um dia foi altar, ele ainda vive. Chamam-no de Mariel, o Guardião do Véu.
Outros o chamam de tolo, louco ou espectro que se recusa a morrer. Mas Cristal o conhecia por outro nome: oráculo silencioso.
Ninguém vai até Mariel por respostas fáceis. E ninguém volta com as mesmas perguntas.
Na alvorada de um ciclo sombrio, quando rumores sobre Tharok voltaram a se espalhar pelos confins de Varneth, a princesa deixou o castelo em silêncio, acompanhada apenas por Problemática, a arcana de olhos quietos e segredos inquietos.
A caminhada até Thandor levou três dias, e em todos eles, nenhuma palavra foi dita entre as duas. Mariel as aguardava sentado sobre um círculo esculpido na pedra. Suas vestes eram feitas de linho antigo, e seus olhos, leitosos como orvalho sobre mármore.
Mas mesmo cego, parecia ver além.
— Então vieram. A Flecha da Luz… e o Eclipse que falhou.
Problemática desviou o olhar. Cristal não.
— Queremos saber o que Tharok ainda procura — disse a princesa.
Mariel sorriu. Mas não foi um sorriso gentil.
— Ele não procura. Ele espera. Espera pelo que ainda falta em você.
— Falar em enigmas não vai nos proteger — rebateu Cristal.
— E falar a verdade vai?
No centro da câmara, ele abriu um compartimento de pedra.
Ali dentro, um objeto enrolado em tecido sagrado: um fragmento de flecha, esculpido com runas que não pertenciam à luz… nem à sombra.
— Esta é a metade esquecida da Flecha da Luz — disse ele.
— O lado que Astra ocultou. O lado que fere, que condena, que exige.
Cristal estendeu a mão, mas Mariel a segurou com força surpreendente.
— Para carregar isso, precisará abrir mão do que mais acredita.
— Que é?
Ele encarou a arcana que a acompanhava.
— A lealdade absoluta.
A flecha completa não obedece.
Ela decide.
De volta ao castelo, Cristal permaneceu em silêncio por dias. Não revelou o que vira, nem o que ouvira. Mas passou a carregar algo novo consigo: um tubo de metal escuro, trancado por selo mágico.
E em noites sem lua, dizem que Problemática visita o Salão da Lâmina e encosta a palma da mão sobre ele, como quem escuta.
Não se sabe o que Mariel realmente foi — homem, espírito, sentinela.
Mas na neblina de Thandor, onde sua voz ecoa entre as ruínas, um sussurro permanece:
“O mundo não será salvo por quem obedece.
Será salvo por quem ousa ouvir… o que ninguém quer escutar.”
Ninguém o esperava. Na costa norte de Sagittaria, onde o sol queima a pele e o vento traz sussurros do fundo do mar, uma embarcação sem velas surgia entre as neblinas. Não havia tripulação, nem bandeira. Apenas ele, Jean.
O arcano de gelo. O andarilho que nunca envia aviso, e nunca diz adeus. Dizem que ele procurava lugares que não querem ser encontrados. E naquela noite, seu destino era uma ilha que só existe quando o mar desiste de esconder.
Alvarin. O nome ainda ecoava nas pedras molhadas. Uma ruína de uma ordem esquecida, submersa pela própria arrogância. E no coração dela — a biblioteca de águas vivas. Jean entrou. Não com feitiços mas, com silêncio.
As algas se afastavam em respeito. Os degraus gelavam à sua passagem, como se reconhecessem a natureza que ele mesmo não celebrava.
No centro da câmara submersa, onde o teto já havia desabado há séculos, um conjunto de pilares ainda se erguia ao redor de uma mesa circular feita de coral petrificado. Lá, havia um único livro.
Ele não tocou. A água ao redor começou a se agitar. Então, uma voz, profunda e metálica, surgiu da escuridão:
“Você sabe o que acontece com os que leem sem permissão?”
Jean não se moveu.
Nem olhou ao redor.
— Sei o que acontece com os que vivem sem saber o que foi esquecido — disse ele, com a voz baixa como uma rachadura no gelo.
A água tremeu.
Do teto partido, uma figura feita de correntezas e sombras desceu, moldando-se como um rosto flutuante.
Sem forma estável.
Sem intenção clara.
“Você não tem perguntas. Por que veio?”
Jean ergueu os olhos pela primeira vez.
— Porque as perguntas mudam. As verdades, não.
Ele então estendeu a mão sobre o livro, mas não o abriu. A figura rodopiou ao redor de si, formando correntes gélidas e bolhas presas em espirais.
“Não quer saber?”
Jean fechou os olhos.
— Saber… é uma maldição que prefiro escolher e não implorar.
O livro se abriu sozinho.
Uma explosão de água e luz inundou a sala. Runas se ergueram do chão. Ecos ancestrais gritavam em idiomas que o gelo traduziu em sua pele.
Ele viu mapas...
Fragmentos de glifos…
E um símbolo, antigo e esquecido: uma lâmina envolta em coral negro — o selo dos Arcanos de Mar Profundo.
Jean tocou a imagem, e tudo cessou.
Quando retornou a Sagittaria, semanas depois, deixou apenas uma frase anotada no diário de Cristal:
“As marés têm donos.
E eles estão acordando.”
Partiu na mesma noite. Nenhum guarda viu o portão se abrir.
Apenas gelo...
...escorrendo sob a lua.
(...)
Hoje, os pescadores do norte falam de um vulto encapuzado que caminha sobre a água. E em noites de céu limpo, pode-se ouvir um som estranho vindo do fundo do mar: Como se páginas virassem... sob as ondas.
Algumas lendas nascem do heroísmo. Outras… da insistência em não levar nada a sério.
Na aldeia de Pedreluz, no vale úmido entre colinas sem nome, os moradores falavam de um certo “Marcio” com mais caretas do que palavras. Diziam que ele era metade homem, metade cachorro — e cem por cento encrenca.
Não uma encrenca má, daquelas que queimam casas ou amaldiçoam plantações.
Uma encrenca... encantada.
Sumiam flores dos jardins e reapareciam trançadas em coroas no telhado da igreja. Fechaduras emperravam misteriosamente toda terça-feira, sempre antes da chegada do cobrador de impostos. E toda vez que alguém novo passava pelo vilarejo, ouvia uma voz atrevida dizendo:
— Ah, se as estrelas soubessem que andam por aí disfarçadas de mulher… cairiam do céu de inveja!
E então o viam: um rapaz animalesco, de orelhas peludas e cauda que balançava de vaidade. Sempre limpo. Camisa alinhada. Lenço no pescoço. E na boca, uma flor vermelha roubada de algum jardim incauto.
Márcio, o galanteador condenado.
Era odiado com um certo carinho. Amaldiçoado, mas limpo demais para ser um monstro. Não roubava por necessidade, mas por capricho. E suas “cantadas” eram motivo de gargalhada entre as mulheres — e de frustração entre os maridos.
Foi por causa dele que Cristal foi enviada. Oficialmente, a missão era investigar perturbações espirituais na fronteira. Extraoficialmente, o Conselho só queria que alguém acabasse com “a palhaçada do cachorro falante”.
Cristal chegou montada em silêncio. Carregava o arco às costas e um cansaço nos ombros que não vinha da viagem. Desde a caverna sagrada, tudo em sua vida exigia gravidade. Mas ali, em Pedreluz, o que encontrou foi um povo mais exausto de risadas inconvenientes do que de qualquer ameaça espiritual.
Na primeira noite, ela perdeu uma das botas — que foi substituída por uma réplica feita de pão seco. Na segunda, alguém invadiu o celeiro e desenhou corações com carvão na parede com os dizeres: “Aqui mora quem roubou meu coração: A Arqueira das Estrelas”. Na terceira noite, ao investigar uma movimentação no beco atrás da estalagem, Cristal o viu pela primeira vez.
Lá estava ele. Márcio surgiu de trás de uma carroça, com uma flor nos dentes, lenço ajeitado e o rabo abanando em semicírculo de forma elegante. Ao vê-la, parou, fez pose de estátua grega e declarou:
— Oh! A própria lua desceu à Terra com um arco nas costas e fogo nos olhos... Mas será que também precisa de proteção contra ladrões de coração?
Cristal piscou. Puxou uma flecha.
Ele levantou as mãos, ainda com a flor entre os dentes e disse:
— Calma, calma! Sou só um poeta... peludo!
Ela não sorriu.
Ele riu. E fugiu.
No dia seguinte, a vila o capturou. Depois de colocar pimenta no poço da praça e sabotar os sinos da igreja para tocarem “Au-au-au-men” em vez do aviso de missa, os moradores decidiram que haviam chegado ao limite.
Amarraram-no em praça pública, e lá ele ficou, rindo, fazendo poses, e pedindo um espelho para verificar se “a luz da vergonha também me deixa bonito”.
A população exigia punição. Expulsão. Que fosse levado para as Ruínas ou lançado ao Véu.
Cristal, em silêncio, pediu para falar com ele a sós.
Na cela improvisada, Márcio assoviava uma canção que provavelmente havia inventado.
— Você é sempre assim? — perguntou ela.
— Assim como? Encantador? Perigoso? Sedutor de arqueiras reais?
— Inconveniente. — disse ela.
Ele sorriu mas, havia algo no olhar. Um cansaço. Um tipo de solidão que nem as piadas conseguiam disfarçar.
— Se eu parar… o que sobra?
Cristal não respondeu de imediato. Observou suas roupas bem cuidadas, o cuidado com os gestos, a forma como tentava parecer nobre mesmo com o corpo deformado por uma maldição antiga.
— Por que a flor? — ela perguntou, apontando para a que agora estava presa ao colarinho dele.
Márcio a retirou, olhou e disse:
— Porque toda maldição precisa de perfume, senão fede à tragédia.
Naquela noite, Cristal reuniu a vila.
— Ele não é um monstro — disse, firme.
— É um tolo. Um incômodo. Um brincalhão.
— Mas... também é um lembrete. De que até mesmo os amaldiçoados sabem fazer sorrir.
Houve protestos. Murmúrios.
Mas ela continuou:
— Em tempos de guerra, nem sempre o que salva um reino é a flecha mais reta. Às vezes, é o riso que sobra quando tudo está queimando.
Ela levou Márcio com ela naquela mesma madrugada.
No caminho, ele tentou colocar uma flor no cabelo dela.
— Só se for de longe — disse Cristal, empurrando a mão dele.
— Então de longe será. Mas um dia… uma dessas flechas vai errar o alvo e acertar o meu coração!
Ela revirou os olhos por ouvir essa cafonice.
Ele riu de sua piada boba.
E pela primeira vez em muito tempo, ela também.
E talvez, só talvez… uma flecha tenha mesmo errado o alvo naquela noite.
O orvalho ainda descansava sobre as pedras antigas quando Mariel chegou às ruínas de Al’mirân. O silêncio das manhãs naquele planalto parecia mais denso do que o habitual — como se o próprio ar respeitasse o tempo de quem ali entrava. Ele carregava pouco: uma bolsa de couro, três penas secas, um frasco de tinta azul-marinho e um pergaminho que preferia não abrir.
Havia algo sereno na forma como caminhava. Seus olhos não procuravam nada em particular, mas pareciam acostumados a encontrar vestígios de sentido no que para outros seriam apenas restos. Um arco quebrado preso à parede, um mosaico de letras que resistia à erosão. Mariel era feito disso — da escuta aos detalhes que não gritavam.
Nos degraus da entrada, ele hesitou. Tocou a pedra central com a palma aberta e murmurou algumas palavras em voz baixa, como se saudasse um antigo conhecido. Não houve resposta visível. Mas ele sorriu, mesmo assim.
Ao cruzar o limiar do templo esquecido, o cheiro de poeira e papiro envelhecido o envolveu como um abraço lento. Era estranho pensar que aquele lugar, que um dia servira aos mestres do saber, agora era apenas eco. Mas para Mariel, os ecos sempre foram mais importantes do que as palavras claras.
Antes de iniciar qualquer ritual, ajoelhou-se diante de uma prateleira caída. Retirou cuidadosamente um pequeno pedaço de tecido dobrado: um pano bordado com duas flores infantis, uma vermelha e outra branca. Tocou-o com ternura, como se tivesse medo de desfazê-lo com os dedos.
— Elas teriam gostado daqui... — murmurou, sem esperar resposta.
E então, como fazia em todos os lugares onde o Véu se tornava mais tênue, ele se calou por completo. Porque há lugares que só se revelam no silêncio.
Na penumbra adiante, o livro ainda não havia começado a escrever.
Foi ao terceiro passo dentro da sala circular que o livro despertou.
Ele não estava sobre um altar, nem trancado em cofre. Jazia simples, deitado sobre um pedestal de pedra escura, sem correntes, sem adornos. Sua capa era de couro antigo, marcada com símbolos que pareciam mover-se levemente quando não olhados diretamente.
Mariel se aproximou devagar. Sentiu o sussurro suave do Véu roçando seus ouvidos, como se algo invisível segurasse a respiração ali. Então, com um ruído seco, as páginas começaram a virar sozinhas.
Palavras brotavam como se fossem sementes. Cresciam linha por linha, em tinta que parecia feita de areia e luz.
"Há nomes que já foram ditos antes do tempo... e destinos que se escrevem mesmo quando não se lê."
Mariel não tocou o livro. Sentou-se ao lado, sobre um degrau gasto, e observou. Sabia que ali não havia armadilha nem truque — mas também sabia que ler demais tem preço.
As páginas se viravam lentamente, revelando frases soltas, mapas incompletos, datas que ainda não haviam chegado. Nomes que ele desconhecia. Um deles, no entanto, pareceu pulsar diante de seus olhos: Erik.
O véu tremeu.
Uma rajada leve percorreu a sala. As chamas das velas mortas reacenderam em azul. Letras flutuaram no ar, dissolvendo-se como poeira dourada. E ali, acima do livro, uma silhueta esculpida em partículas surgiu por um instante: a cabeça de um íbis, olhos de areia, e um livro flutuando preso ao peito.
THOTH.
O Guardião não falou. Não precisava. Bastava sua presença para que o julgamento começasse. Mariel sabia. A próxima página ainda estava em branco — e o livro o esperava.
Ele ergueu sua pena. Respirou fundo. Olhou para o pano bordado dobrado ao lado, e sussurrou apenas:
— Que jamais leiam o nome delas aqui.
E então, escreveu.
A pena deslizou sem ruído. A tinta, por um instante, parecia viva — serpenteando entre os traços, formando uma frase que Mariel nunca repetiria em voz alta. A página seguinte queimou sozinha, e o cheiro era o mesmo da infância: livros molhados, flores no jardim, cabelos secos ao sol.
Ele fechou os olhos. Por um momento, viu as duas meninas correndo entre árvores de espelhos — risos que não ecoavam, porque pertenciam a um tempo que o mundo decidiu esquecer. Não eram apenas filhas. Eram âncoras. E ele as deixara.
Quando abriu os olhos, o livro estava calado.
Seu Guardião — “THOTH” — já não estava visível... mas um rastro de letras desfeitas ainda pairava no ar, como poeira que hesitava em cair.
Mariel se levantou. Pegou a pena, o frasco de tinta, e o pano bordado.
Antes de partir, escreveu na parede com os dedos sujos de tinta dourada:
“A sabedoria não é saber mais que os outros. É saber o que não dizer.”
E sem olhar para trás, desceu os degraus da ruína.
O livro permaneceu.
Esquecido. Silencioso. Mas à espera de alguém que soubesse escutar.
O vento descia frio pelo vale, trazendo o cheiro de ferro e terra molhada. A estrada parecia ter esquecido o caminho, coberta de raízes e fragmentos de pedra. Edinho cavalgava sozinho, o manto puído e o escudo às costas refletindo o tom pálido do amanhecer. Já fazia três dias que deixara as muralhas de Sagittaria, seguindo rumo ao oeste, onde o mapa ainda marcava um nome antigo: Valemor.
A vila de onde partira antes da guerra. O lugar onde tudo começara.
Conforme se aproximava, a paisagem tornava-se cinza. Cinzas no chão, cinzas nas árvores, cinzas no próprio ar. Valemor não ardia mais, mas parecia que nunca deixara de queimar. Edinho desmontou do cavalo e avançou a pé. Cada passo era um eco de lembrança — o som de martelos nas forjas, risos infantis, o cheiro de pão recém-saído do forno. E entre essas memórias, uma voz, sempre a mesma, doce e firme como vento de outono:
“Não esqueça de voltar.”
Mas ele esquecera. Ou fingira esquecer, porque lembrar doía demais.
As ruínas se erguiam à frente, cobertas de musgo e névoa. As janelas quebradas olhavam para ele como olhos que ainda o reconheciam. Por um instante, pensou em voltar. Mas algo o empurrou adiante — talvez um chamado que vinha do próprio chão.
Ao atravessar o portão antigo da vila, ouviu passos. Som fraco, mas humano. Edinho levou a mão à espada. O silêncio que se seguiu foi mais pesado que o som. E então ele viu: figuras pálidas caminhando entre as casas — ecos do Véu, memórias projetadas no ar, sombras que repetiam os gestos do passado. Um homem carregando lenha, uma mulher costurando, crianças correndo... fantasmas de dias felizes.
No centro da vila, uma chama tremeluzia sobre uma pedra. Pequena, quase invisível, mas viva. Edinho se ajoelhou diante dela. O calor era real.
— Astra... — murmurou. — Queimaram o que restava, não foi?
O vento respondeu com um sussurro.
Ele caminhou até uma casa parcialmente em pé, reconhecendo cada detalhe — o portão baixo, o poço ao lado, a marca de uma ferradura na parede. O coração pesou. Era ali. Sua antiga casa. O lar que deixara ao atender o chamado de Sagittaria.
Ao empurrar a porta, o ar se moveu. Pó e cinzas dançaram em espirais suaves, revelando o contorno de uma mesa, de duas cadeiras, de um jarro quebrado. E então, por um instante, uma forma ergueu-se diante dele: o rosto de Maelira, desenhado em luz e névoa.
Ela não falava, mas o olhar bastava. Havia ternura ali, e também perdão.
Edinho caiu de joelhos. A espada tilintou no chão.
— Eu devia ter ficado... — disse ele, com voz contida. — Devia ter lutado por você.
A figura o tocou de leve, dissolvendo-se em cinzas douradas. As partículas pousaram sobre o escudo, e ele sentiu um calor leve, quase humano.
“A promessa era viver o bastante para lembrar.”
A voz parecia vir de dentro dele — da lembrança, não do vento.
Edinho permaneceu ajoelhado, em silêncio.
Não buscou consolo, nem tentou entender o que vira. Apenas manteve-se ali, de cabeça baixa, como quem reconhece o peso do que foi perdido e o valor do que permanece.
A coragem, compreendeu, não estava em lutar — mas em permanecer inteiro diante da ausência.
O sol já nascia quando Edinho se levantou. Pegou o escudo e o ergueu à altura do rosto. A superfície estava fria, mas o centro — o ponto onde as cinzas haviam caído — ainda guardava calor. Não uma luz visível, apenas uma sensação. Como se algo permanecesse ali, discreto e fiel.
Ele passou os dedos sobre o metal e murmurou:
“Nem toda chama serve para iluminar. Algumas apenas impedem que o frio vença.”
Montou no cavalo e olhou para trás uma última vez. A névoa começava a se dissipar. As formas espectrais desapareciam, libertas. Valemor repousava em silêncio, e naquele silêncio havia paz.
Enquanto se afastava pelo vale, o vento soprou de novo, e Edinho jurou que ouviu risos ao longe — como o som de lembranças sendo devolvidas ao tempo.
Desde então, nas noites mais frias, dizem que os soldados do Portão Oeste veem uma leve brisa dourada tremular sobre os escudos quando Edinho está de guarda.
Ninguém nunca viu luz alguma, mas todos sentem o mesmo calor — como se a coragem dele ainda queimasse, mesmo no silêncio.
Chamam isso de A Luz de Valemor.
Não uma chama visível, mas a lembrança viva de um homem que lutou contra o esquecimento.