O orvalho ainda descansava sobre as pedras antigas quando Mariel chegou às ruínas de Al’mirân. O silêncio das manhãs naquele planalto parecia mais denso do que o habitual — como se o próprio ar respeitasse o tempo de quem ali entrava. Ele carregava pouco: uma bolsa de couro, três penas secas, um frasco de tinta azul-marinho e um pergaminho que preferia não abrir.
Havia algo sereno na forma como caminhava. Seus olhos não procuravam nada em particular, mas pareciam acostumados a encontrar vestígios de sentido no que para outros seriam apenas restos. Um arco quebrado preso à parede, um mosaico de letras que resistia à erosão. Mariel era feito disso — da escuta aos detalhes que não gritavam.
Nos degraus da entrada, ele hesitou. Tocou a pedra central com a palma aberta e murmurou algumas palavras em voz baixa, como se saudasse um antigo conhecido. Não houve resposta visível. Mas ele sorriu, mesmo assim.
Ao cruzar o limiar do templo esquecido, o cheiro de poeira e papiro envelhecido o envolveu como um abraço lento. Era estranho pensar que aquele lugar, que um dia servira aos mestres do saber, agora era apenas eco. Mas para Mariel, os ecos sempre foram mais importantes do que as palavras claras.
Antes de iniciar qualquer ritual, ajoelhou-se diante de uma prateleira caída. Retirou cuidadosamente um pequeno pedaço de tecido dobrado: um pano bordado com duas flores infantis, uma vermelha e outra branca. Tocou-o com ternura, como se tivesse medo de desfazê-lo com os dedos.
— Elas teriam gostado daqui... — murmurou, sem esperar resposta.
E então, como fazia em todos os lugares onde o Véu se tornava mais tênue, ele se calou por completo. Porque há lugares que só se revelam no silêncio.
Na penumbra adiante, o livro ainda não havia começado a escrever.
Foi ao terceiro passo dentro da sala circular que o livro despertou.
Ele não estava sobre um altar, nem trancado em cofre. Jazia simples, deitado sobre um pedestal de pedra escura, sem correntes, sem adornos. Sua capa era de couro antigo, marcada com símbolos que pareciam mover-se levemente quando não olhados diretamente.
Mariel se aproximou devagar. Sentiu o sussurro suave do Véu roçando seus ouvidos, como se algo invisível segurasse a respiração ali. Então, com um ruído seco, as páginas começaram a virar sozinhas.
Palavras brotavam como se fossem sementes. Cresciam linha por linha, em tinta que parecia feita de areia e luz.
"Há nomes que já foram ditos antes do tempo... e destinos que se escrevem mesmo quando não se lê."
Mariel não tocou o livro. Sentou-se ao lado, sobre um degrau gasto, e observou. Sabia que ali não havia armadilha nem truque — mas também sabia que ler demais tem preço.
As páginas se viravam lentamente, revelando frases soltas, mapas incompletos, datas que ainda não haviam chegado. Nomes que ele desconhecia. Um deles, no entanto, pareceu pulsar diante de seus olhos: Erik.
O véu tremeu.
Uma rajada leve percorreu a sala. As chamas das velas mortas reacenderam em azul. Letras flutuaram no ar, dissolvendo-se como poeira dourada. E ali, acima do livro, uma silhueta esculpida em partículas surgiu por um instante: a cabeça de um íbis, olhos de areia, e um livro flutuando preso ao peito.
THOTH.
O Guardião não falou. Não precisava. Bastava sua presença para que o julgamento começasse. Mariel sabia. A próxima página ainda estava em branco — e o livro o esperava.
Ele ergueu sua pena. Respirou fundo. Olhou para o pano bordado dobrado ao lado, e sussurrou apenas:
— Que jamais leiam o nome delas aqui.
E então, escreveu.
A pena deslizou sem ruído. A tinta, por um instante, parecia viva — serpenteando entre os traços, formando uma frase que Mariel nunca repetiria em voz alta. A página seguinte queimou sozinha, e o cheiro era o mesmo da infância: livros molhados, flores no jardim, cabelos secos ao sol.
Ele fechou os olhos. Por um momento, viu as duas meninas correndo entre árvores de espelhos — risos que não ecoavam, porque pertenciam a um tempo que o mundo decidiu esquecer. Não eram apenas filhas. Eram âncoras. E ele as deixara.
Quando abriu os olhos, o livro estava calado.
Seu Guardião — “THOTH” — já não estava visível... mas um rastro de letras desfeitas ainda pairava no ar, como poeira que hesitava em cair.
Mariel se levantou. Pegou a pena, o frasco de tinta, e o pano bordado.
Antes de partir, escreveu na parede com os dedos sujos de tinta dourada:
“A sabedoria não é saber mais que os outros. É saber o que não dizer.”
E sem olhar para trás, desceu os degraus da ruína.
O livro permaneceu.
Esquecido. Silencioso. Mas à espera de alguém que soubesse escutar.