O vento descia frio pelo vale, trazendo o cheiro de ferro e terra molhada. A estrada parecia ter esquecido o caminho, coberta de raízes e fragmentos de pedra. Edinho cavalgava sozinho, o manto puído e o escudo às costas refletindo o tom pálido do amanhecer. Já fazia três dias que deixara as muralhas de Sagittaria, seguindo rumo ao oeste, onde o mapa ainda marcava um nome antigo: Valemor.
A vila de onde partira antes da guerra. O lugar onde tudo começara.
Conforme se aproximava, a paisagem tornava-se cinza. Cinzas no chão, cinzas nas árvores, cinzas no próprio ar. Valemor não ardia mais, mas parecia que nunca deixara de queimar. Edinho desmontou do cavalo e avançou a pé. Cada passo era um eco de lembrança — o som de martelos nas forjas, risos infantis, o cheiro de pão recém-saído do forno. E entre essas memórias, uma voz, sempre a mesma, doce e firme como vento de outono:
“Não esqueça de voltar.”
Mas ele esquecera. Ou fingira esquecer, porque lembrar doía demais.
As ruínas se erguiam à frente, cobertas de musgo e névoa. As janelas quebradas olhavam para ele como olhos que ainda o reconheciam. Por um instante, pensou em voltar. Mas algo o empurrou adiante — talvez um chamado que vinha do próprio chão.
Ao atravessar o portão antigo da vila, ouviu passos. Som fraco, mas humano. Edinho levou a mão à espada. O silêncio que se seguiu foi mais pesado que o som. E então ele viu: figuras pálidas caminhando entre as casas — ecos do Véu, memórias projetadas no ar, sombras que repetiam os gestos do passado. Um homem carregando lenha, uma mulher costurando, crianças correndo... fantasmas de dias felizes.
No centro da vila, uma chama tremeluzia sobre uma pedra. Pequena, quase invisível, mas viva. Edinho se ajoelhou diante dela. O calor era real.
— Astra... — murmurou. — Queimaram o que restava, não foi?
O vento respondeu com um sussurro.
Ele caminhou até uma casa parcialmente em pé, reconhecendo cada detalhe — o portão baixo, o poço ao lado, a marca de uma ferradura na parede. O coração pesou. Era ali. Sua antiga casa. O lar que deixara ao atender o chamado de Sagittaria.
Ao empurrar a porta, o ar se moveu. Pó e cinzas dançaram em espirais suaves, revelando o contorno de uma mesa, de duas cadeiras, de um jarro quebrado. E então, por um instante, uma forma ergueu-se diante dele: o rosto de Maelira, desenhado em luz e névoa.
Ela não falava, mas o olhar bastava. Havia ternura ali, e também perdão.
Edinho caiu de joelhos. A espada tilintou no chão.
— Eu devia ter ficado... — disse ele, com voz contida. — Devia ter lutado por você.
A figura o tocou de leve, dissolvendo-se em cinzas douradas. As partículas pousaram sobre o escudo, e ele sentiu um calor leve, quase humano.
“A promessa era viver o bastante para lembrar.”
A voz parecia vir de dentro dele — da lembrança, não do vento.
Edinho permaneceu ajoelhado, em silêncio.
Não buscou consolo, nem tentou entender o que vira. Apenas manteve-se ali, de cabeça baixa, como quem reconhece o peso do que foi perdido e o valor do que permanece.
A coragem, compreendeu, não estava em lutar — mas em permanecer inteiro diante da ausência.
O sol já nascia quando Edinho se levantou. Pegou o escudo e o ergueu à altura do rosto. A superfície estava fria, mas o centro — o ponto onde as cinzas haviam caído — ainda guardava calor. Não uma luz visível, apenas uma sensação. Como se algo permanecesse ali, discreto e fiel.
Ele passou os dedos sobre o metal e murmurou:
“Nem toda chama serve para iluminar. Algumas apenas impedem que o frio vença.”
Montou no cavalo e olhou para trás uma última vez. A névoa começava a se dissipar. As formas espectrais desapareciam, libertas. Valemor repousava em silêncio, e naquele silêncio havia paz.
Enquanto se afastava pelo vale, o vento soprou de novo, e Edinho jurou que ouviu risos ao longe — como o som de lembranças sendo devolvidas ao tempo.
Desde então, nas noites mais frias, dizem que os soldados do Portão Oeste veem uma leve brisa dourada tremular sobre os escudos quando Edinho está de guarda.
Ninguém nunca viu luz alguma, mas todos sentem o mesmo calor — como se a coragem dele ainda queimasse, mesmo no silêncio.
Chamam isso de A Luz de Valemor.
Não uma chama visível, mas a lembrança viva de um homem que lutou contra o esquecimento.