Algumas lendas nascem do heroísmo. Outras… da insistência em não levar nada a sério.
Na aldeia de Pedreluz, no vale úmido entre colinas sem nome, os moradores falavam de um certo “Marcio” com mais caretas do que palavras. Diziam que ele era metade homem, metade cachorro — e cem por cento encrenca.
Não uma encrenca má, daquelas que queimam casas ou amaldiçoam plantações.
Uma encrenca... encantada.
Sumiam flores dos jardins e reapareciam trançadas em coroas no telhado da igreja. Fechaduras emperravam misteriosamente toda terça-feira, sempre antes da chegada do cobrador de impostos. E toda vez que alguém novo passava pelo vilarejo, ouvia uma voz atrevida dizendo:
— Ah, se as estrelas soubessem que andam por aí disfarçadas de mulher… cairiam do céu de inveja!
E então o viam: um rapaz animalesco, de orelhas peludas e cauda que balançava de vaidade. Sempre limpo. Camisa alinhada. Lenço no pescoço. E na boca, uma flor vermelha roubada de algum jardim incauto.
Márcio, o galanteador condenado.
Era odiado com um certo carinho. Amaldiçoado, mas limpo demais para ser um monstro. Não roubava por necessidade, mas por capricho. E suas “cantadas” eram motivo de gargalhada entre as mulheres — e de frustração entre os maridos.
Foi por causa dele que Cristal foi enviada. Oficialmente, a missão era investigar perturbações espirituais na fronteira. Extraoficialmente, o Conselho só queria que alguém acabasse com “a palhaçada do cachorro falante”.
Cristal chegou montada em silêncio. Carregava o arco às costas e um cansaço nos ombros que não vinha da viagem. Desde a caverna sagrada, tudo em sua vida exigia gravidade. Mas ali, em Pedreluz, o que encontrou foi um povo mais exausto de risadas inconvenientes do que de qualquer ameaça espiritual.
Na primeira noite, ela perdeu uma das botas — que foi substituída por uma réplica feita de pão seco. Na segunda, alguém invadiu o celeiro e desenhou corações com carvão na parede com os dizeres: “Aqui mora quem roubou meu coração: A Arqueira das Estrelas”. Na terceira noite, ao investigar uma movimentação no beco atrás da estalagem, Cristal o viu pela primeira vez.
Lá estava ele. Márcio surgiu de trás de uma carroça, com uma flor nos dentes, lenço ajeitado e o rabo abanando em semicírculo de forma elegante. Ao vê-la, parou, fez pose de estátua grega e declarou:
— Oh! A própria lua desceu à Terra com um arco nas costas e fogo nos olhos... Mas será que também precisa de proteção contra ladrões de coração?
Cristal piscou. Puxou uma flecha.
Ele levantou as mãos, ainda com a flor entre os dentes e disse:
— Calma, calma! Sou só um poeta... peludo!
Ela não sorriu.
Ele riu. E fugiu.
No dia seguinte, a vila o capturou. Depois de colocar pimenta no poço da praça e sabotar os sinos da igreja para tocarem “Au-au-au-men” em vez do aviso de missa, os moradores decidiram que haviam chegado ao limite.
Amarraram-no em praça pública, e lá ele ficou, rindo, fazendo poses, e pedindo um espelho para verificar se “a luz da vergonha também me deixa bonito”.
A população exigia punição. Expulsão. Que fosse levado para as Ruínas ou lançado ao Véu.
Cristal, em silêncio, pediu para falar com ele a sós.
Na cela improvisada, Márcio assoviava uma canção que provavelmente havia inventado.
— Você é sempre assim? — perguntou ela.
— Assim como? Encantador? Perigoso? Sedutor de arqueiras reais?
— Inconveniente. — disse ela.
Ele sorriu mas, havia algo no olhar. Um cansaço. Um tipo de solidão que nem as piadas conseguiam disfarçar.
— Se eu parar… o que sobra?
Cristal não respondeu de imediato. Observou suas roupas bem cuidadas, o cuidado com os gestos, a forma como tentava parecer nobre mesmo com o corpo deformado por uma maldição antiga.
— Por que a flor? — ela perguntou, apontando para a que agora estava presa ao colarinho dele.
Márcio a retirou, olhou e disse:
— Porque toda maldição precisa de perfume, senão fede à tragédia.
Naquela noite, Cristal reuniu a vila.
— Ele não é um monstro — disse, firme.
— É um tolo. Um incômodo. Um brincalhão.
— Mas... também é um lembrete. De que até mesmo os amaldiçoados sabem fazer sorrir.
Houve protestos. Murmúrios.
Mas ela continuou:
— Em tempos de guerra, nem sempre o que salva um reino é a flecha mais reta. Às vezes, é o riso que sobra quando tudo está queimando.
Ela levou Márcio com ela naquela mesma madrugada.
No caminho, ele tentou colocar uma flor no cabelo dela.
— Só se for de longe — disse Cristal, empurrando a mão dele.
— Então de longe será. Mas um dia… uma dessas flechas vai errar o alvo e acertar o meu coração!
Ela revirou os olhos por ouvir essa cafonice.
Ele riu de sua piada boba.
E pela primeira vez em muito tempo, ela também.
E talvez, só talvez… uma flecha tenha mesmo errado o alvo naquela noite.