Muito antes de existir um trono em Sagittaria...
Muito antes da luz encontrar o arco de Cristal...
Havia apenas o Céu em Silêncio.
Dizem que no princípio, o mundo era uma canção. Sem palavras, sem forma — apenas o sussurro de uma luz viva, que sonhava em criar. Desse sonho, nasceu Astra, a Deusa da Justiça e Guardiã da Luz Celestial. Com sua flecha dourada, ela separou o tempo da eternidade, o céu da terra, o amor do medo. E onde sua flecha tocou, surgiram os Primeiros Guardiões — seres de constelações, montanhas e raízes.
O mais fiel entre eles era Sagitário, o centauro das estrelas, aquele que vê longe e protege os que carregam fé.
Mas da sombra do próprio sonho de Astra nasceu Tharok. Não por erro. Mas porque toda luz projeta uma sombra quando se olha de muito perto. Tharok não desejava o mundo — desejava o brilho da criação.
Invejava o amor.
Invejava o equilíbrio.
Ele caiu do céu como um raio invertido, levando consigo as estrelas mortas e moldando guerreiros de trevas — os Espectros do Vazio.
Ali nasceu a Primeira Guerra da Luz, há tanto tempo que nem mesmo os ventos a lembram.
Astra, enfraquecida, selou sua flecha no coração do mundo e partiu para além do véu.
Mas antes de desaparecer, ela deixou uma profecia:
“Quando a última Lua Dourada tocar o solo de Sagittaria...
...um arco será erguido por mãos humanas...
...e a luz, reencontrará seu caminho.”
Desde então, o Reino de Sagittaria cresceu sob o olhar do céu —
Protegido pelos filhos da flecha, pela linhagem dourada, pela esperança que jamais se curvou.
Mas Tharok não foi destruído. Apenas aguarda o momento certo para apagar a luz de novo. As eras passaram, e os nomes sussurrados entre os véus se perderam como poeira nas ruínas. A lenda da Flecha Dourada sobreviveu apenas em fragmentos, escondida em templos abandonados e em livros que ninguém mais ousava ler.
Mas agora, no coração de Sagittaria, os sinais começam a retornar.
E enquanto os ventos mudam sobre o lago e as sombras se alongam pelas muralhas do castelo, aqueles que caminham entre o presente e o passado estão prestes a fazer sua escolha.
A história começa...
O céu estava cinzento como as promessas antigas que o tempo esqueceu. As águas do lago, tão calmas que pareciam conter um segredo, espelhavam o manto nebuloso que repousava sobre Sagittaria naquela manhã. E ali, entre vapores silenciosos, duas figuras permaneciam imóveis sobre a pedra central — o mesmo lugar onde haviam se encontrado pela primeira vez, tantos anos atrás.
Neste momento, dois anos haviam se passado desde o dia em que a flecha brilhou diante de todos no vale da montanha. A lembrança da batalha contra o dragão ainda era tema nas rodas do povoado, mas no castelo, o tempo consolidara mudanças mais profundas — e as responsabilidades se transformaram em rotina. Cristal agora andava de cabeça erguida entre os corredores de pedra, e Erik, sempre ao lado dela, carregava o peso do que não era dito. A “dupla dourada”, como alguns começavam a chamar, começava a sentir o peso real daquilo que haviam aceitado.
Sobre esta pedra, Cristal mantinha os olhos em direção ao o horizonte, onde o sol tentava romper a névoa, em vão. Sua armadura dourada reluzia de maneira suave, envelhecida pelas batalhas, mas não sem brilho. Erik, ao seu lado, apoiava a mão sobre a espada, sem pressa, como se escutasse a respiração do mundo.
— Lembra o que você me disse aqui? — ela perguntou, com um sorriso sem ironia.
— Disse muitas coisas — respondeu ele.
— Mas nenhuma tão verdadeira quanto: “um silêncio também pode ser resposta”.
Cristal não respondeu de imediato. Uma leve brisa cortou a margem e envolveu seus cabelos.
Ela fechou os olhos por um instante, como se quisesse guardar aquele momento.
— Você ainda acredita nisso? — ela perguntou, mais para si do que para ele.
— Agora mais do que nunca.
A névoa se adensou de forma quase imperceptível. O som da água tocando a pedra parecia se distanciar. E então, sem aviso, uma terceira presença surgiu, envolta em um capuz encharcado.
Jean.
Seu passo era leve, mas sua presença sempre trazia o peso do desconhecido. As roupas estavam sujas de viagem, e parte de sua máscara azul-escura gotejava. Ele nada disse por um tempo. Apenas olhou para os dois — e, por um segundo, parecia estar tentando lembrar o caminho de volta àquele instante.
— O que foi desta vez? — perguntou Erik, direto.
Jean ergueu os olhos. Neles havia um cansaço que não vinha do corpo.
— Estive em Halem — murmurou, por fim. — A cidade submersa acordou. Alguém está mexendo com o que deveria permanecer oculto. O símbolo do véu... reapareceu em ruínas onde não deveria existir nada além de pedra.
Cristal se aproximou um passo.
— Você trouxe provas?
Jean tirou um pequeno fragmento envolto em tecido. Ao desdobrá-lo, revelou um pedaço de pedra escura com inscrições que brilhavam em azul — runas do antigo idioma de Astra, raramente vistas desde os tempos do véu fechado.
Erik tocou a base da espada.
— Isso muda tudo.
Jean inclinou a cabeça.
— Ou talvez apenas confirme o que vocês já sabiam, mas hesitavam em aceitar.
O silêncio voltou a dominar. E foi novamente Cristal quem o rompeu:
— Vai partir outra vez?
Jean assentiu.
— Não pertenço a esta paz. Ainda não. Há vozes que só escutam quando se está longe... e sozinhas.
Erik estendeu a mão. Jean a apertou, com firmeza. Cristal apenas assentiu, com um olhar de despedida que já conhecia o ciclo.
Sem mais palavras, Jean desapareceu pela névoa da mesma forma que surgiu.
Ao longe, o lago se tornou espelho do céu.
E naquele reflexo opaco, os dois souberam que nada seria igual.
A névoa não trazia apenas lembranças. Ela agora trazia presságios.
Mesmo com o símbolo de Sagitário entalhado em sua armadura, Cristal sabia que algo ainda faltava. A fé do povo havia florescido como grama após a chuva, mas dentro dela, persistia um silêncio — um espaço entre o que sentia e o que compreendia. Não bastava liderar. Era preciso entender o que havia despertado com a luz. Foi por isso que, em segredo, ela decidiu ir até o templo antigo. Um lugar onde, segundo velhas crônicas, nenhuma luz se acendia há gerações.
Mas algo ali a aguardava.
Algo que não ignoraria sua presença.
As pedras do caminho ecoavam sob os cascos dos cavalos. O som era o único movimento vivo naquela trilha. As árvores inclinavam-se como se prestassem reverência ao silêncio, e o vento carregava o cheiro de terra molhada e tempo esquecido. Cristal segurava as rédeas com firmeza, mas seus olhos estavam fixos à frente, onde os contornos do antigo templo de Orien começavam a emergir entre as colinas enevoadas. O templo, esquecido por séculos, agora surgia como um sussurro do passado — ruínas de uma era onde o Véu era mais fino e a fé tinha o peso de uma espada.
— Acha que encontraremos algo real desta vez? — perguntou Erik, quebrando o silêncio com sua voz grave e contida.
— Já encontramos. O silêncio daqui... é diferente. Parece que o tempo não gosta de passar neste lugar.
Erik assentiu.
O templo fora erguido por tribos extintas, anteriores até mesmo ao Primeiro Conselho de Sagittaria. Dizia-se que ali os antigos ouviam vozes do outro lado, e alguns até acreditavam que os próprios traços do céu desciam sobre a terra para tocar os mortais. Superstição, talvez. Mas não depois do que tinham presenciado.
Eles desmontaram dos cavalos com um gesto coordenado — um reflexo de anos de combate lado a lado. O vento aumentou levemente, como se saudasse sua chegada. Cristal caminhou até o pilar principal da entrada e passou a mão pelas runas entalhadas — símbolos em espiral que pulsavam levemente com uma luz azulada, como as que Jean havia mostrado dias antes.
Erik desembainhou sua espada. Não por desconfiança. Por respeito.
— Isso está ativo — ele disse. — Não foi só o deslizamento de terra que revelou este lugar. Foi como se algo de dentro quisesse ser visto.
Cristal não respondeu. Avançou com passos lentos para dentro da nave central do templo, seus olhos absorvendo cada centímetro. A arquitetura era circular, construída com blocos de pedra escura, coberta por musgos e raízes que não ousavam cruzar o centro da sala.
No meio do piso, uma marca espiralada idêntica às inscrições do Véu cobria o chão. Ela se ajoelhou ao lado da espiral e colocou a palma da mão sobre a pedra. O frio que sentiu não era natural. Era o frio de um espaço que jamais fora tocado por luz verdadeira.
Erik olhou ao redor, atento aos ecos. Havia algo de errado no som daquele lugar. Nenhum ruído retornava. Nenhuma resposta às passadas. Somente a presença do templo e a impressão de que estavam sendo vigiados por olhos que não podiam ser vistos.
— Isso não é apenas um templo — disse Cristal. — É um marcador.
— De quê?
— De um ponto de ruptura.
Ela se ergueu. Em suas costas, as runas começaram a pulsar com mais força. Cristal se virou devagar. Uma parede antes lisa agora revelava um afresco esculpido — uma imagem que não estava ali momentos antes.
No afresco, via-se uma figura encapuzada, envolta em um manto de estrelas, com um arco nas costas e a palma estendida. No centro da palma, o símbolo do Sagitário.
— Isso não é uma representação dos guardiões — disse Erik. — Isso é...
— Uma profecia — sussurrou Cristal.
Ambos se aproximaram. Ao lado da figura encapuzada, inscrições em runas arcaicas se acendiam lentamente. Cristal, que estudara os fragmentos com Jean, começou a traduzir:
"Quando a luz for dada àquele que não a buscou... e o arco acender entre as sombras... o Véu se partirá em ecos, e o passado invadirá o presente."
Erik deu um passo para trás.
— Isso fala de você.
Cristal hesitou.
— Ou de alguém antes de mim. Ou depois.
Subitamente, um som. Não exatamente um som — uma vibração, como se o chão tivesse respirado. Ambos instintivamente colocaram as mãos sobre suas armas.
— Algo está se movendo sob nós — disse Erik.
No centro da espiral no chão, uma rachadura começou a se formar. Mas não era destruição. Era abertura. A pedra se retraía como pétalas de uma flor invertida, revelando uma escadaria para baixo, oculta há séculos.
Cristal olhou para Erik. Ele assentiu.
— Vamos.
Desceram juntos, um degrau de cada vez, guiados pela tênue luz azul que parecia emanar das próprias paredes. O ar era mais frio, mais denso. E, no fundo da escadaria, uma câmara menor se revelou.
Ali, repousava uma mesa de pedra com um objeto no centro: uma peça metálica circular, semelhante a uma lente ou espelho quebrado. Ao redor, inscrições do mesmo padrão espiralado, mas essas estavam apagadas.
Cristal tocou a borda da peça e sentiu um choque que a fez recuar. Sua visão escureceu por um instante, e uma voz sussurrou diretamente em sua mente:
“O véu não é um muro... é uma porta. E a chave já foi tocada.”
Ela se afastou, respirando com dificuldade.
— O que foi? — perguntou Erik, erguendo a espada.
— Alguém nos viu. Do outro lado.
Ela ergueu os olhos, e o espelho — mesmo rachado — agora refletia não eles, mas uma figura envolta em sombras, sem rosto, mas com olhos como fendas em brasa.
A imagem sumiu em um segundo.
Erik se aproximou devagar.
— Isso precisa ser levado para análise. Por Jean. Por Problemática. Por quem for capaz de entender o que tocamos.
— Ainda não — disse Cristal. — Se removermos agora, podemos quebrar o selo.
Ela estendeu um pano e cobriu o espelho. As runas ao redor apagaram-se como se dormissem outra vez.
Eles subiram em silêncio. Ao emergirem do templo, o céu estava mais escuro, como se o tempo tivesse saltado horas. Os cavalos estavam inquietos. E na distância, sobre a linha do horizonte, três pássaros negros voavam em círculos — um presságio conhecido das lendas do Véu.
Cristal montou o cavalo e disse — Temos que falar com Jean. Isso... isso não pode mais ser ignorado.
Erik apenas assentiu.
Enquanto cavalgavam de volta para Sagittaria, o templo atrás deles desaparecia novamente na névoa — não como quem se esconde, mas como quem aguarda.
Enquanto Cristal buscava respostas nos templos antigos, Erik começou a perder o sono. Não pelas batalhas ou pelas decisões da corte — mas por sonhos que surgiram com uma nitidez estranha demais para serem apenas lembranças. Desde o surgimento da Flecha da Luz, havia uma inquietação que não o deixava. Algo o chamava para o norte. Algo que misturava frio, perda… e um passado que se recusava a descansar.
A noite estava silenciosa demais. Erik despertou de súbito, o peito arfando como se tivesse lutado contra algo invisível. O suor escorria sob a camisa mesmo com o frio cortante que envolvia o acampamento dos patrulheiros dourados. Levantou-se da cama improvisada feita de palha e lona e sentou-se à beira, olhos fixos na escuridão do abrigo. Ele sonhara novamente. A mesma paisagem. O mesmo frio que não vinha do mundo.
Do lado de fora, a lua prateada pairava imóvel sobre as montanhas distantes. Erik calçou as botas devagar, como quem prolonga a transição entre sonho e vigília. Puxou o manto escuro sobre os ombros e saiu para a escuridão. A planície além do acampamento estava coberta de neblina baixa. Ele caminhou até a encosta e respirou fundo. No silêncio da madrugada, recordou as imagens que ainda lhe queimavam na mente.
No sonho, ele estava em um campo coberto de gelo negro. O céu, tingido de vermelho, parecia prestes a se despedaçar. Cada passo afundava como se pisasse em véus partidos. Ao longe, as ruínas de uma torre antiga chamavam por ele. Lá dentro, uma criança soluçava, escondida sob uma escada desfeita. Quando Erik se aproximava, a criança o olhava com os mesmos olhos que ele via no espelho. E então, sempre no mesmo instante, a torre caía.
Desta vez, havia um novo elemento: Uma voz — rouca, feminina — sussurrava seu nome. Não “Erik”. Mas “Erion”. Um nome que ele ouvira uma vez na infância, nos sussurros de um velho que o acolheu quando chegou a Sagittaria. A primeira vez que tivera esse sonho fora aos treze anos. Naquela época, pensara que era apenas um trauma de guerra. Uma lembrança distorcida da fuga do antigo reino que chamara de lar, antes da destruição.
Mas agora, após o que encontraram no Templo de Orien, o sonho parecia mais uma lembrança que uma fantasia.
Ele levou a mão ao pescoço e puxou a corrente que carregava desde menino. Dela pendia um medalhão dourado com o símbolo de uma estrela de seis pontas envolta em uma serpente congelada. Era o único objeto recuperado de sua antiga terra — uma terra que não constava em nenhum mapa de Sagittaria. Na noite anterior, ao tocar o espelho das ruínas, o medalhão queimara em seu peito. Cristal não viu. Ninguém viu. Mas ele soube.
O Véu também o conhecia.
— Não consegue dormir? — disse uma voz suave atrás dele.
Cristal.
Ela surgira como sempre fazia: silenciosa, firme, parte da noite.
— Não — respondeu ele. — Sonhei com o norte de novo.
Ela se aproximou, cruzando os braços sobre o peito.
— E o que viu?
— Gelo. Ruínas. A torre. A criança... e um nome.
— Que nome?
— “Erion”.
Ela ergueu as sobrancelhas, surpresa. Nunca ouvira Erik falar de nomes além do seu. Ele sempre fora reservado quanto ao passado.
— Pode ser seu nome verdadeiro? — perguntou ela, cautelosa.
— Não sei. Talvez. Ou talvez seja um chamado. O que vi... parecia mais do que memória.
Cristal olhou para o horizonte.
— Jean uma vez disse que certos sonhos não são visões do passado, mas fragmentos do Véu tentando nos lembrar de algo que esquecemos.
Erik manteve o silêncio. O vento soprou mais forte. Ao longe, os primeiros sons dos animais da madrugada começavam a surgir.
— Quando saímos daquele templo — continuou ele — senti que algo acordou em mim. E quando tocamos aquelas inscrições, minha mente foi puxada de volta para aquele lugar... um lugar que eu não sabia que lembrava.
Cristal olhou para ele com firmeza.
— Talvez você esteja mais ligado a isso tudo do que imaginamos.
Erik assentiu.
— E se meu antigo reino não foi apenas destruído... mas esquecido de propósito? Esquecido pelo Véu?
Ela não respondeu de imediato.
— Quando voltarmos a Sagittaria, quero que você fale com Problemática. Se alguém pode entender esses fragmentos de sonho, é ela.
— Você confia nela?
— Confio em sua intuição. E, às vezes, isso vale mais que a verdade.
Erik sorriu de leve. Em meio à guerra e às sombras que os cercavam, Cristal ainda sabia ser humana.
Na manhã seguinte, o acampamento foi desmontado. A patrulha seguia para o sul, onde rumores de movimentações incomuns nas margens do Rio Sombrio começavam a preocupar o Conselho Velado. Mas Erik não partiu com eles. Ele montou sozinho e tomou um caminho distinto: o norte. Ninguém questionou. Não era necessário.
Ao deixar os campos dourados de Sagittaria para trás, Erik teve a sensação de que cavalgava contra o tempo — como se cada passo em direção ao norte fosse um retorno, não uma jornada.
Dias se passaram.
A floresta cedeu lugar a campos de pedra. O verde se tornou cinza. O céu parecia sempre coberto por nuvens sem nome. E, enfim, o cenário que habitava seus sonhos se revelou diante dele: um vale coberto de gelo antigo, com fragmentos de construções circulares emergindo como dentes de uma besta adormecida.
Ali, a torre.
Ou o que restava dela.
Ele desmontou. O frio era real, cortante, embora não houvesse vento. Erik se aproximou das ruínas e, pela primeira vez, soube sem dúvida: ele já estivera ali.
Tocou uma das pedras.
E o mundo girou.
A visão o engoliu.
Ele era criança de novo. Corria pela neve com pés nus, fugindo de gritos e clarões. A cidade estava em chamas. Mas não chamas comuns — eram azuis. Azuis como as runas do templo. Ele subiu as escadas da torre, chorando, e ali se encolheu.
A voz veio novamente.
“Erion... o sangue do norte ainda respira. O Véu será rompido primeiro por aquele que fugiu.”
Erik caiu de joelhos. A dor de memória atravessou o corpo como uma lança. Quando abriu os olhos, estava de volta às ruínas. Mas uma coisa havia mudado. Sobre o altar destruído da torre, agora repousava uma inscrição, em pedra recente:
“A justiça começa onde o véu termina.”
Ele se levantou, confuso, e percebeu algo que não havia notado antes.
Na lateral da torre, escondido sob neve e tempo, estava o símbolo do Sagitário. Não como guardião... mas como selo.
Erik entendeu. O selo não protegia algo. Ele prendia algo.
E alguém estava tentando quebrá-lo.
O símbolo de Sagitário já era visto em bandeiras, em esculturas… até em sonhos. Mas no subsolo do castelo, onde as tochas ardiam com dificuldade, o silêncio permanecia imune à esperança.
Enquanto o povo celebrava a luz, Problemática caminhava por sombras. Ela via coisas que os outros ignoravam, ou fingiam não ver. E por isso, mesmo sendo uma das poucas em quem Cristal confiava, continuava a ser temida — e observada — por todos os outros.
O Castelo Dourado estava mais silencioso do que o habitual. E quando os corredores reais silenciam, é porque alguém decidiu que era melhor não deixar rastros — nem palavras, nem passos, nem respirações.
Problemática caminhava devagar, como se o piso reconhecesse seus passos. Sua túnica púrpura escura, com detalhes dourados nas ombreiras e cintura, flutuava suavemente a cada movimento. Seus cabelos longos, soltos e castanhos caíam como véu sobre os ombros, reforçando sua presença — uma figura tão temida quanto respeitada pelos nobres. Ela não usava capuz, nem máscara; sua força vinha de ser vista, e mesmo assim permanecer impenetrável.
O salão menor do conselho, onde apenas reuniões paralelas eram realizadas, estava vazio — ou ao menos parecia. Ela entrou sem bater. Acendeu uma única tocha na parede oeste e esperou. Alguns segundos depois, uma sombra deslizou da escuridão. Era o Conselheiro Vetarn, um homem magro e de postura ereta, sempre envolto em mantos escuros como sua opinião sobre tudo.
— A senhora deveria ter pedido uma audiência — disse ele, sem hostilidade, mas com formalidade suficiente para marcar território.
— O senhor já sabia que eu viria, Conselheiro — respondeu Problemática, sua voz baixa, mas firme, com aquela suavidade que nunca vinha desacompanhada de precisão.
— E então veio, como esperado. O que traz você até as engrenagens enferrujadas deste castelo?
Ela estendeu um pergaminho selado.
— Um símbolo. Encontrado por Cristal e Erik. Não quero que seja discutido em praça pública. Mas o senhor deve saber que há inscrições antigas em movimento novamente.
Vetarn pegou o pergaminho, leu com lentidão e ergueu uma sobrancelha.
— Símbolos do Véu... em Lehnar? Pensava que aquilo era apenas superstição local.
— Superstições não acendem runas e não sussurram em sonhos, Conselheiro.
Houve um momento de silêncio denso. Problemática deu um passo em direção à tocha. A chama tremeluzia como se ouvisse.
— E o que você acha que significa? — indagou Vetarn, finalmente.
— Significa que o castelo não está tão bem protegido quanto parece. E que há forças despertas observando mais do que apenas as fronteiras.
Ela virou-se para ele, seu olhar firme e glacial.
— O Véu não se rasga sozinho. E se ele já começou a ceder, pode ser que alguém aqui dentro esteja puxando as pontas.
No andar inferior do castelo, por trás de um conjunto de tapeçarias desgastadas, havia uma escada de pedra pouco usada — não por estar oculta, mas por medo do que havia no fim dela. Era ali que os antigos documentos da era pré-aliança estavam guardados, protegidos por fechaduras que apenas três pessoas sabiam abrir. Problemática era uma delas.
Horas mais tarde, ao adentrar os Arquivos Velados, acendeu uma pequena esfera de luz mágica que flutuou sobre seu ombro. As prateleiras rangiam com o peso dos séculos. Ela passou os dedos pelos títulos gravados em couro até encontrar o que buscava: Tratados do Véu Interior.
Sentou-se sobre a pedra fria e começou a ler.
“O Véu divide o que é permitido lembrar do que não deve ser recordado. Quando suas dobras se agitam, é sinal de que algo esquecido quer voltar.”
As palavras causaram um arrepio. Ela lembrou-se do olhar de Cristal ao retornar do templo. E da voz que Erik não quis descrever.
De repente, um leve som a fez erguer o olhar.
Na entrada do arquivo, alguém a observava.
Jean.
Ele estava encostado na parede, braços cruzados, capuz puxado para trás, deixando ver seus olhos castanhos. Vestia-se como sempre: simples, desgastado, com o rosto parcialmente coberto por uma máscara azul escura — mas dessa vez, ela notou algo diferente. Ele a observava com respeito. Não com desconfiança.
— Achei que estivesse a meio continente de distância — disse ela, devolvendo o livro à prateleira.
— Estava — respondeu Jean. — Mas você sabe como são os ventos quando o Véu se inquieta.
Ela cruzou os braços.
— Por que voltou?
Jean deu alguns passos à frente.
— Porque algo está se formando... dentro do castelo. Algo que não está nas florestas ou nas montanhas. Está aqui. Nos corredores. Nos conselhos. Nos sorrisos contidos.
Problemática sentiu o peso daquelas palavras.
— E você sabe o que é?
Jean hesitou. E então, simplesmente respondeu:
— Ainda não. Mas eu sei quem o verá antes de todos.
Ela ergueu uma sobrancelha.
— Quem?
Jean a encarou com seriedade.
— Você.
Problemática permaneceu em silêncio por alguns instantes. A luz mágica sobre seu ombro oscilava, refletindo sobre seus olhos pensativos.
— Se você acredita nisso... por que não levou o assunto a Cristal? — perguntou ela, finalmente.
— Porque o que está em curso exige silêncio — respondeu Jean. — E vigilância. E você, Problemática, é a única pessoa nesse castelo capaz de ouvir o que não foi dito.
Ela abaixou o olhar, e por um momento sua expressão perdeu o habitual controle. Mas logo voltou à rigidez que a tornava temida. Jean era sábio o suficiente para entender: ela estava prestes a agir.
— Há algo que eu nunca disse a ninguém — disse ela em voz baixa. — Nem a Cristal. Nem a Erik.
Jean apenas aguardou.
— Quando eu era aprendiz de arcana, uma mulher de véu prateado apareceu em meu quarto numa noite de inverno. Ela me disse três coisas: que eu jamais poderia confiar inteiramente em nenhum conselho, que meu dom estava ligado ao tempo — e que um dia, eu veria um símbolo arder dentro do castelo. Quando isso acontecesse, eu teria que escolher entre a verdade... ou o trono.
Jean se manteve calado, mas seus olhos estavam mais atentos do que nunca.
Problemática então abriu sua mão e mostrou algo: um pedaço de pergaminho antigo, com um símbolo queimado no centro. O símbolo do Véu, idêntico ao que Erik e Cristal viram no templo.
— Isso apareceu hoje debaixo da minha porta — disse ela. — Sem pegadas. Sem mágica visível. Apenas... apareceu.
Jean inspirou fundo.
— Então já começou.
Ela assentiu.
— E se for verdade que há um nome dentro deste castelo sussurrando com os fantasmas do outro lado... eu o encontrarei.
— Mesmo que isso custe sua posição?
— Minha posição nunca me definiu. O que me define é o que vejo — e o que escolho fazer com isso.
Jean esboçou um raro gesto: curvou levemente a cabeça, em sinal de respeito.
— Então seja rápida, Arcana. Há olhos no teto... e ouvidos nas paredes.
Antes que ela pudesse responder, ele desapareceu pela escuridão da escadaria, tão rápido quanto surgira.
Problemática apagou a esfera de luz mágica e voltou a guardar o livro no lugar certo, com cuidado. Mas em vez de sair pela porta principal, ergueu uma pequena alavanca oculta entre os livros. Um painel de pedra girou em silêncio, revelando uma passagem secreta.
Sem hesitar, ela entrou.
O que quer que estivesse prestes a ser descoberto, seria descoberto nos subterrâneos do castelo — onde ninguém ousava vigiar, e onde as verdades mais perigosas eram enterradas.
Não era mais só o véu que tremia — agora era o portão. O oeste, que sempre parecia quieto demais, foi o primeiro a arder. Os ventos já haviam mudado. Cristal e Erik sabiam disso. E nas muralhas, Edinho mantinha os olhos fixos no horizonte mesmo antes de ouvirem o primeiro grito. A ameaça que viria naquela noite não era numerosa, mas carregava no corpo o tipo de pavor que os livros evitavam descrever.
O primeiro alarme soou antes do amanhecer. Era um som metálico e profundo, vindo da torre norte do castelo. Três toques curtos, seguidos de um longo — era o código antigo que sinalizava uma ameaça fora das muralhas, mas ainda próxima o bastante para exigir atenção imediata.
Cristal despertou num só movimento. Não precisou vestir a armadura completa — o treinamento da juventude havia ensinado que o tempo nem sempre permitia protocolo. Calçou as botas, prendeu o arco nas costas e correu pelos corredores dourados ainda mergulhados na penumbra. Erik já a esperava no pátio inferior. Estava pronto, espada em punho, olhos fixos na silhueta do portão oeste, ao longe, onde uma coluna de fumaça escura se erguia em espiral.
— As patrulhas disseram que o fogo começou sozinho — disse ele. — Nas pedras do portão. E está se espalhando... contra o vento.
Cristal o encarou por um segundo.
— Isso não é fogo comum.
— Nem os alarmes foram comuns. Só soam assim quando o castelo sente.
Ambos montaram seus cavalos e galoparam em silêncio, acompanhados por quatro soldados de elite. Ao se aproximarem do portão oeste, o céu já ganhava tons vermelhos — não do sol nascente, mas das labaredas vivas que dançavam na muralha como serpentes.
Ao descerem, a cena era dantesca.
Chamas se contorciam sobre si mesmas, envolvendo partes da muralha como se procurassem rachaduras por onde se infiltrar. Os soldados da guarda local já haviam tentado água, areia, magia elemental — nada surtia efeito. O fogo parecia reagir, se afastando dos ataques apenas para ressurgir com mais fúria logo em seguida.
— Recuem! — ordenou Cristal. — Isso não é fogo natural. Mantenham os civis longe!
Erik aproximou-se da muralha com a espada empunhada. Aproximou a lâmina lentamente da chama — e viu o metal fundir nas bordas, mesmo sem contato direto.
— Essas chamas... sugam. Não queimam. Sugam energia.
— Isso é magia do Véu — murmurou uma voz atrás deles.
Problemática.
Ela surgiu com os cabelos longos soltos dançando ao vento, túnica escura e olhos alertas. Havia saído dos corredores secretos do castelo direto para o front, sem explicações.
— Essas chamas não foram lançadas por homens — completou ela. — Nem por arcanos. São ecos... de alguma brecha.
— Brecha? — indagou Cristal.
— Brechas no tecido. O Véu está se abrindo em rachaduras. E o primeiro lugar a sentir são sempre os limiares — portões, muros, bordas. Este fogo é o primeiro sintoma de algo que quer entrar.
Erik não hesitou. Voltou-se para Cristal:
— Podemos conter?
— Podemos resistir — respondeu ela. — Por enquanto.
Ela avançou sozinha até a linha de chamas, com o arco em punho. Girou o corpo suavemente, mirando acima das labaredas, e disparou uma flecha envolta em luz branca — a mesma luz que emergira dela anos atrás na caverna do primeiro despertar. A flecha se cravou no solo diante do portão. Por um momento, o fogo recuou, estremecido. Um som agudo, como um grito abafado, ecoou entre as pedras.
Erik aproveitou. Avançou por trás da onda de recuo, desferindo um golpe circular com sua espada — agora imbuída de energia canalizada. Um rastro azul cortou o chão, dividindo a terra. As chamas vacilaram.
— Está funcionando! — gritou ele. — Avançar!
Mas antes que pudessem dar mais um passo, o chão tremeu.
Do centro do círculo de chamas, uma rachadura abriu-se nas pedras — não por explosão, mas por ruptura.
E dele, surgiu a criatura.
Ela tinha pouco mais de um metro e meio de altura, mas sua presença dobrava o ar ao redor. O corpo era composto por pedra enegrecida e placas de rocha fumegante, rachadas por dentro com veios de lava viva. Seus braços eram longos, quase tocando o chão, e suas mãos terminavam em garras flamejantes. A cabeça era disforme, com chifres partidos, uma boca larga sem lábios e dois olhos sem íris nem pupilas — apenas vazios de brasa.
— Garneth... — murmurou Problemática.
Erik não tirava os olhos da criatura.
— Isso é real?
— Demônios menores do folclore do sul. Diziam que eram lendas para assustar camponeses. Mas não é. É um Rupturador.
A criatura soltou um grito agudo e prolongado, um som que reverberava no osso mais do que no ouvido. Soldados recuaram instintivamente. Garneth avançou de quatro patas, veloz como um animal predador, e pulou sobre uma das torres de vigia, derrubando a estrutura de pedra com um único golpe de sua garra.
— Mantenham os arqueiros na retaguarda! — gritou Erik. — Essa coisa não pensa, mas destrói tudo!
Cristal correu lateralmente, subiu por uma formação de pedras e atirou do alto. A flecha perfurou uma das placas da criatura, revelando o brilho de magma interno.
— Ele tem pontos vulneráveis! Atirem onde a lava aparece!
Garneth girou em fúria e lançou um jato de fogo de sua boca deformada, atingindo um barril de suprimentos que explodiu em estilhaços.
Problemática conjurou uma rajada de vento comprimido que empurrou a criatura por segundos. Isso bastou para Erik se aproximar pelas costas, deslizando sob uma coluna de chamas. Sua espada cravou-se na perna da criatura. Garneth gritou — não de dor, mas como um trovão que despertava o próprio chão. A criatura saltou sobre ele, e o empurrou contra a muralha. Erik se defendeu com o antebraço, que recebeu o impacto como um martelo de fornalha.
— Erik! — gritou Cristal.
Erik lutava com os dentes cerrados. Sentia a pele queimar sob o calor do monstro, mas não recuava.
— AGORA!
Cristal pulou da lateral e disparou três flechas em sequência — duas nas juntas do ombro e uma no peito aberto da criatura. As luzes das flechas se fundiram, e Garneth foi empurrado para trás, gritando em fúria.
Problemática terminou o ritual. Estava com os braços erguidos, olhos vidrados.
— Selo arcano de contenção! Que os ventos antigos reconheçam esta forma!
Uma espiral de gelo e ar surgiu ao redor da criatura, prendendo-a no chão.
Garneth gritou mais uma vez, tentou se soltar, mas as runas começaram a cobri-lo em círculos. Sua forma tremulou... e enfim, explodiu em cinzas e fumaça, deixando apenas uma rachadura escura no solo.
Silêncio.
O portão resistira. Os soldados estavam vivos. Mas o chão, as muralhas, o ar — nada era mais o mesmo.
Problemática olhou para a espiral deixada pela explosão.
— Isso não foi um ataque. Foi um aviso.
Enquanto o castelo reunia conselheiros para entender os sinais do norte e Débi desaparecia entre ruínas sem nome, Jean reapareceu como sempre fazia: sem aviso, sem explicação. Não procurou Cristal, nem se apresentou ao conselho. Apenas caminhou até os salões inundados de uma biblioteca esquecida — onde o silêncio parecia mais antigo do que o próprio reino.
Ali, longe dos olhos de todos, algo aguardava ser lido.
Os Pântanos do Espelho Quebrado não constavam nos mapas atuais de Sagittaria. E os mais antigos apenas marcavam sua existência com símbolos de alerta, acompanhados por frases como "Terra dos que não voltam" ou "Silêncio que afoga". Era um território esquecido — não porque fora escondido, mas porque ninguém queria lembrar.
Jean conhecia o caminho.
Numa de suas viagens solitárias pelo leste, anos atrás, ele havia tropeçado nesse lugar — guiado mais por intuição do que por certeza. Na época, encontrara as águas imóveis e o reflexo partido, mas nada mais. O que viu naquela noite, jamais contou. Nem a Cristal. Nem a Erik.
Agora, voltava não mais com dúvida, mas com propósito. Vestia-se com sua túnica escura e o capuz puxado sobre a cabeça. O vento cortava a planície, mas ele não tremia. Jean já não sentia o frio como antes. Depois de dois dias cruzando áreas abandonadas, alcançou as bordas do pântano. A vegetação era densa, mas retorcida, como se as árvores tentassem se afastar umas das outras. O chão era uma mistura de lama e raízes, e o ar tinha gosto de metal velho.
Jean caminhou até o lago central, onde a névoa formava uma película imóvel sobre a água. A superfície era tão lisa que refletia o céu mesmo onde não havia luz. Mas ali, no centro, o reflexo era quebrado — como se algo debaixo tentasse espelhar uma verdade distorcida.
Ele parou.
Estava sozinho.
Ou quase.
— Você voltou — disse uma voz feminina atrás dele.
Jean não se virou. Já sabia quem era.
Problemática.
Ela caminhou até seu lado, o manto deslizando sobre as pedras úmidas. Seus olhos buscavam a água com uma expressão de temor raro.
— Pensei que viesse sozinho — disse ela.
— Vim. Mas o Véu não deixa ninguém realmente só — respondeu ele, com a voz baixa.
Ela se aproximou um pouco mais.
— Então essa é a Biblioteca Submersa?
Jean assentiu.
— Sim. Está lá embaixo. Eu... estive aqui uma vez. Muito tempo atrás.
Problemática o encarou, surpresa.
— E por que nunca contou?
Ele olhou para a superfície imóvel da água.
— Porque naquela noite, a biblioteca me mostrou algo que eu ainda não estava pronto para entender.
Eles caminharam sobre as pedras até o centro do lago. Um antigo círculo de runas — quase apagadas pelo tempo — marcava o local.
Jean tirou a luva e tocou a água.
Um círculo de luz expandiu-se a partir do toque. E, no centro do lago, a água começou a girar, abrindo-se como uma espiral viva.
Abaixo dela, a biblioteca apareceu.
Era feita de pedra negra, envolta em musgo e raízes que pareciam vivas. As paredes eram altas, com colunas afundadas e janelas em forma de olhos. Ela não era apenas uma construção: era um relicário da memória do mundo, fundido com a própria terra.
Jean e Problemática desceram por uma escada esculpida nas paredes do poço.
Lá dentro, o ar era seco, apesar da água. E o som — ausente.
Nenhuma respiração. Nenhum passo. Nem o som da própria pele.
Problemática tocou uma das estantes e sentiu um leve tremor.
— Eles ainda estão aqui...
— Quem? — perguntou Jean.
— Os guardiões do silêncio. Espíritos sem nome que protegem o que nunca deveria ter sido escrito.
Eles avançaram entre estantes circulares até uma sala central. No meio dela, uma mesa de pedra com um livro só.
Jean se aproximou.
O livro estava aberto. As páginas não eram de papel, mas de algum tipo de fibra mineral, com inscrições que se moviam levemente à luz da tocha arcana.
Ele leu em voz baixa:
“ Quando o Véu sangra, os selos tremem.
Quando o selo racha, os Rupturadores vêm.
Quando os Rupturadores falham, os Anciãos sussurram.
Quando os Anciãos se erguem… nada mais sonha.”
Problemática se aproximou lentamente.
— Esse texto fala de uma ordem de eventos. Garneth foi apenas o primeiro.
Jean assentiu.
— E há mais. Olhe isto.
Virou a página.
Um símbolo: uma espiral envolta em seis linhas que se entrelaçavam como raízes. No centro, um olho fechado.
— Esse é o selo dos Primevos — murmurou Problemática. — Criaturas que vivem no limiar do mundo. Os pré-astra. Não são guardiões. São... vigias do que deve dormir.
Jean fechou o livro.
— E um deles está acordando.
Na saída da biblioteca, enquanto a água voltava a fechar o espelho sobre suas cabeças, Jean olhou para o céu cinzento.
— Sagittaria não está sendo atacada. Está sendo... sondada.
Problemática nada respondeu. Mas sua mão tocou, instintivamente, a pequena adaga de prata que sempre carregava na cintura.
Ela não sabia exatamente contra o quê lutariam.
Mas agora, sabia onde começava o próximo rastro.
Depois do que aconteceu no Portão Oeste, o medo já não andava disfarçado pelos corredores de Sagittaria. Não era mais tempo de lendas — mas de rastros e ausências. Mensageiros enviados ao norte não retornaram. Alguns diziam que se perderam. Outros que viram mais do que deveriam. Jean estava ausente havia semanas. E nas ausências, era Débi quem entrava em silêncio onde outros não ousavam.
As Ruínas de Varneth, no extremo norte de Sagittaria, pareciam mais um eco do que um lugar. Antigas colunas cobertas de musgo negro erguiam-se sob névoas eternas, e o ar carregava um cheiro metálico, como se o tempo ali estivesse oxidando devagar. Nenhum animal fazia som. Nenhuma folha se movia.
Débi caminhava sozinha.
Na noite anterior, Cristal havia lhe entregue uma flecha prateada — a prata-luar, forjada com runas silenciosas e uma ponta leve como o suspiro de uma estrela. Não houve ordens formais. Apenas um olhar entre ambas e um gesto com as mãos. A princesa sabia que alguns perigos não podiam ser enfrentados por batalhões.
E Débi sabia que não havia como recusar.
No início da missão, Débi tentou manter a mente vazia, como sempre fazia nas florestas. Mas as pedras ali pareciam observar. As colunas quebradas se alinhavam como túmulos, e os muros tombados formavam desenhos que ela não conseguia decifrar.
O lugar estava vivo.
Mas não com vida.
Ela percorreu as ruínas até encontrar uma escadaria irregular, parcialmente escondida por uma raiz petrificada. Desceu devagar, os olhos atentos à escuridão adiante. Chegou a um corredor de pedras úmidas, onde inscrições cobriam as paredes. Algumas haviam sido riscadas — outras pareciam ter crescido sozinhas. Na ponta do corredor, uma sala circular esperava.
Era ali. No centro da sala, uma mulher ajoelhada. O cabelo longo escondia o rosto. Os ombros tremiam, como quem soluça sem som. Débi não sentiu medo de imediato. Sentiu pena. Mas ao dar dois passos adiante, a mulher ergueu o rosto. Ela mesma.
O reflexo perfeito de si mesma, com o mesmo corte de cabelo, as mesmas rugas nos cantos dos olhos — mas um olhar vazio. Como se fosse Débi sem alma.
A voz da cópia era doce.
— Você não lembra? Você escolheu não vir. Ficou onde era segura. Onde poderia amar. Ensinar. Ser você.
Débi não respondeu.
A flecha de prata-luar pesava nas costas, como se chamasse por ela.
— Não tem que lutar por um reino que nem sempre lembra seu nome — sussurrou a cópia. — Você poderia estar viva em paz, não viva em guerra.
As palavras não vinham apenas da boca da cópia — elas se espalhavam pela sala, ecoando nas paredes como lembranças de uma vida não vivida.
Débi respirou fundo. Tocou o cabo de sua adaga.
Mas foi ao olhar para o chão — para seus próprios pés firmes sobre aquelas pedras esquecidas — que ela lembrou quem era.
— Essa vida que você me mostra... pode até ser bonita — disse ela, firme. — Mas não é a minha.
— É a que você quis — respondeu a cópia, agora com os olhos escurecendo.
— Foi a que deixei — corrigiu Débi. — E continuo escolhendo todos os dias não voltar.
A cópia se ergueu. O corpo começou a se distorcer, os dedos tornando-se garras, a voz agora um eco gutural. As paredes brilharam com runas azuis.
O ar ficou espesso.
Um véu foi rasgado — e a sombra atacou.
O combate não foi grandioso. Não teve gritos nem explosões. Mas foi uma dança de lâminas e verdades. Cada golpe que Débi desferia abria rachaduras na ilusão. Cada passo recuado da criatura era uma memória falsa que desaparecia. Quando Débi finalmente cravou a flecha prateada no centro do vulto, não houve sangue. A criatura se desfez em fragmentos de luz azulada, que subiram ao teto e se dissolveram.
No centro da sala, onde antes havia a sombra, restava agora um espelho trincado, preso à rocha como uma flor morta. Sua moldura estava coberta de poeira ancestral. Débi se aproximou. No espelho, por um instante, viu seu reflexo. Depois, viu um céu cheio de rachaduras. Um exército sem rosto. E o som... de alguém chorando onde o tempo não passa. Ela não sabia o que significava. Mas sabia que era um aviso.
Levantou-se. Guardou a flecha. E partiu.
Cristal entenderia. Problemática entenderia.
E ela mesma… finalmente se entendia.
Muito antes de símbolos brilharem sobre armaduras e antes de o povo sussurrar o nome de Cristal com reverência, havia apenas silêncio. Silêncio no castelo, nas memórias, e na jovem que andava pelos corredores como se fosse parte das paredes.
Foi numa missão não planejada, entre a caçada e o fogo, que o destino começou a se mostrar. Não com coroas ou discursos, mas com coragem — e luz.
A névoa se espalhava como um véu úmido sobre as montanhas ao sul de Sagittaria. O chão era de pedra escurecida pelo tempo e pela chuva. O musgo resistia em pequenos tapetes entre as rochas, e o vento soprava baixo, como se tivesse medo de perturbar o solo.
Cristal caminhava sozinha.
Seus passos eram leves, treinados pelo hábito da solidão. A caçada era desculpa — para os guardas, para a corte, para a própria consciência. A verdade era que ela precisava escapar. Não apenas do castelo. Mas de si mesma.
Na noite anterior, como tantas outras, jantara sozinha, ignorada pelas damas da corte e pelos olhos do conselho. Os nobres conversavam sobre alianças e tratados, os cavaleiros discutiam vitórias e glórias futuras. Ninguém notava a figura sentada no fim da mesa, com o olhar baixo e os ombros curvados. A filha órfã. A pupila da feiticeira fria.
Sua tia — arcana de prestígio e língua afiada — jamais lhe dirigia uma palavra em público. Em privado, dizia apenas o essencial, com olhos que julgavam, não que amavam. A ensinara rituais, sim. Mas nunca risos. Nunca carinho.
“Um governante não precisa ser amado, apenas respeitado.”
Mas Cristal não queria apenas respeito.
Queria ser vista.
Queria escolher o que era.
O céu daquela manhã parecia mais cinzento do que o habitual, mas ela não voltou. Algo pulsava sob seus pés, algo antigo, sutil. O bosque, que se tornava montanhoso ao sul, abria passagem entre pedras curvas como costelas de uma criatura adormecida.
Ela caminhava há horas quando o terreno mudou.
As árvores rarearam. O calor do ar se alterou. Umidade deu lugar a uma brisa seca, e a névoa se dissipou diante de um paredão rochoso quase imperceptível — escondido por raízes trançadas e folhas mortas.
Cristal se aproximou.
Entre duas pedras, havia uma fenda escura.
Ela não hesitou.
A caverna cheirava a poeira antiga e cinzas frias. A escuridão era total, mas não a assustava. Em suas mãos, ativou uma pequena pedra encantada — fraca, de luz azulada, suficiente apenas para ver o próprio caminho. O corredor levou a uma sala circular, esculpida como se mãos de gigantes tivessem moldado o lugar. Pilares quebrados, musgo nas bases, e inscrições apagadas nas paredes.
No centro, iluminado por uma abertura no teto por onde caía um feixe de luz tímido, repousava um arco.
Simples. Feito de madeira escura, rústica.
Não havia corda. Nem flechas.
Mas mesmo assim, o objeto chamava por ela.
Cristal se aproximou, sentindo o ar mudar.
O som do mundo pareceu cessar.
Ao tocar o arco, uma leve vibração percorreu sua mão.
Como se ele a reconhecesse.
Ela o ergueu.
E a caverna respirou com ela.
...
Longe dali, ao norte, em uma trilha militar das colinas douradas, o exército dourado patrulhava a fronteira sul.
Erik liderava.
Agora oficial, vestia a armadura com discrição — ainda se adaptando ao peso das responsabilidades. Mas aquela manhã o incomodava. Desde cedo, uma inquietação o tomava por dentro, como se algo estivesse fora de lugar.
— Estamos muito ao sul, senhor — comentou um dos soldados. — Não há registros de atividade nesta região há meses.
Erik não respondeu. Seus olhos estavam fixos nas montanhas.
Ele conhecia o mapa.
Mas algo ali… não estava em nenhum mapa.
...
Na caverna, um rugido ecoou. Cristal girou instintivamente. Do fundo da sala, a parede rachou com um estalo. Pedras se romperam, e de dentro da fenda escura emergiu a criatura que a lenda temia:
Um dragão cuspidor de fogo.
Não um gigante mitológico, mas uma forma jovem — focada, vibrante, letal. Seus olhos ardiam em dourado. O corpo era coberto de escamas rubras com reflexos de cobre. O ar ao seu redor queimava, mesmo sem labaredas.
Cristal não gritou.
Ela segurou o arco que havia encontrado. Mas não havia corda. Não havia flechas. Mesmo assim, o manteve erguido. Como se soubesse que ele era tudo o que precisava.
O dragão soltou sua primeira labareda.
O fogo atingiu o arco diretamente.
E naquele momento, algo mudou para sempre.
O fogo atingiu o arco. Não com violência, mas com propósito. Cristal permaneceu firme. As chamas a cercaram como serpentes em dança, mas não a tocaram. O arco em suas mãos absorveu o calor como se fosse seu alimento. A madeira escura brilhou. O ar vibrou.
O símbolo de Sagitário surgiu.
Não entalhado. Não pintado.
Mas sim, Gravado em luz.
Pelas rachaduras da caverna, o calor penetrou ainda mais fundo nas paredes — e com ele, pedaços antigos de ouro bruto começaram a escorrer, derretidos pelo mesmo fogo que tentava consumir a arqueira.
O dragão recuou, surpreso. Cristal sentiu o chão sob seus pés se transformar. A rocha que antes era pedra seca agora brilhava com veios dourados vivos.
No centro da câmara, uma flecha surgiu. Feita do próprio ouro tocado pelo fogo ancestral. Era como se a caverna oferecesse a resposta. Ela a pegou. A ponta ainda fumegava, mas ao toque de Cristal, esfriou como gelo.
Ela estava prestes a armar o arco quando ouviu os sons da entrada. Passos. Vozes. Metal contra pedra. Erik havia chegado. Na encosta da caverna, o oficial dourado observava em silêncio.
A entrada não permitia visão total, mas o suficiente para que vissem uma jovem guerreira diante de um dragão em chamas, segurando um arco que não existia no arsenal de Sagittaria.
Erik sentiu o ar escapar dos pulmões.
— É ela… — sussurrou.
— Ela está sozinha, senhor — alertou um dos soldados. — Vai morrer!
Erik não respondeu.
Seu coração batia em ritmo antigo, como quando a viu pela primeira vez no lago.
Mas agora… ela não parecia frágil.
Não parecia invisível.
Ela parecia escolhida.
Ele saltou pela abertura lateral, deslizou por pedras e entrou na caverna.
O dragão o viu. Rugiu. E avançou.
Erik sacou a espada.
— Cristal!
Ela virou. Por um instante, o tempo congelou entre os dois.
Nenhuma palavra foi necessária.
Ela armou o arco.
Ele correu pela lateral da criatura, golpeando uma das patas traseiras.
O dragão rugiu em fúria.
Chamas explodiram.
Erik se lançou contra uma coluna caída, desviando por pouco.
Cristal se moveu com agilidade incomum, deslizando por trás de um pilar e reposicionando o arco. O fio de luz estava firme. A flecha de ouro parecia brilhar mais forte à medida que o combate se intensificava.
Ela viu Erik em apuros — o dragão cuspia uma nova rajada.
Sem pensar, ela correu em sua direção e ergueu o arco entre eles.
Um escudo de luz se formou.
Circular, vibrante.
As chamas ricochetearam como água em pedra sagrada.
Erik olhou para ela e de forma ofegante disse — Você me salvou.
— Ainda não acabou. Respondeu ela quando saltou, rolando para o centro da câmara.
...
Os outros soldados finalmente forçaram a entrada.
Cinco homens pararam boquiabertos ao ver a cena:
Uma mulher jovem, envolta em luz, empunhando um arco dourado. Um dragão em brasa, hesitante, diante dela. E o símbolo de Sagitário brilhando em sua armadura, vivo como um sol em miniatura.
— O que… é isso? — sussurrou um.
— Ela… ela está lutando com ele sozinha.
— Não… eles estão lutando juntos — corrigiu outro, apontando Erik, agora ao lado dela.
...
Cristal armou o arco.
As palavras da tia voltaram à mente, frias como veneno:
“Você nasceu para observar, não para agir.”
Ela puxou a corda. A flecha vibrou.
E uma nova voz se formou em seu coração. Mais quente. Mais firme.
Sua própria voz.
“Eu nasci para ser vista.”
O dragão cuspiu chamas. Erik girou, desviando.
Cristal disparou.
A Flecha da Luz cortou o ar com velocidade impossível.
Não havia som. Apenas um clarão.
A flecha atingiu o dragão no peito — não com destruição, mas com revelação.
A criatura parou. O fogo cessou.
Os olhos em brasa suavizaram.
Como se a reconhecesse.
E então… desfez-se.
Em partículas douradas.
Luz que se dissolvia como poeira de estrela.
O silêncio dominou a caverna.
Apenas os respingos dourados e o brilho persistente da armadura de Cristal permaneciam.
O silêncio na caverna era total. Como se o próprio tempo houvesse prendido a respiração. Onde antes um dragão de fogo flamejava com fúria, restavam agora apenas fagulhas douradas flutuando no ar, girando devagar, sem pressa de desaparecer.
Cristal permaneceu de pé, o arco ainda em mãos. Sua respiração era profunda, mas controlada. A armadura, antes discreta, agora reluzia com o símbolo de Sagitário ainda vivo no peito, como se o metal tivesse sido esculpido por pura luz.
Erik caminhou até ela, devagar.
Não como um guerreiro.
Mas como alguém que acabara de presenciar o impossível.
Os soldados ficaram imóveis, observando. Ninguém ousava interromper. Nenhum som de espada, nem comentário. Apenas olhares — de temor, de reverência, de uma estranha paz que tomava conta do lugar.
Um deles caiu de joelhos.
— O que está fazendo? — sussurrou outro.
— Não sei. — Sua voz tremia. — Mas parece… certo.
Erik parou diante de Cristal.
Ela ainda não havia dito uma palavra.
Ele observou seu rosto, suado, manchado de fuligem. Os cabelos soltos caiam em mechas sobre os ombros. Mas seus olhos…
Seus olhos estavam em paz.
— Você sabia que isso aconteceria? — ele perguntou, baixo.
Ela apenas balançou a cabeça.
— Não.
— E mesmo assim… veio?
Ela o olhou. Pela primeira vez, com a firmeza de quem compreendia seu papel.
— Eu sempre estive vindo.
Erik não respondeu. Apenas sorriu — não de alegria, mas de algo mais raro. Reconhecimento.
No centro da caverna, onde antes estivera o dragão, poucas poças de metal derretido ainda reluziam. Ouro misturado com energia mágica, sagrado pelo fogo que não destrói, mas desperta. Erik se aproximou. Ajoelhou-se ao lado de uma delas. Colocou parte do metal em um pequeno frasco cerimonial de ferro, que carregava consigo desde as cerimônias de cavalaria — algo que nunca usara. Agora, usaria.
— Para quê isso? — perguntou um dos soldados, em voz baixa.
— Para forjar algo que ainda não tem nome — respondeu Erik, sem olhar. — Mas que um dia… será justiça.
Quando o grupo deixou a caverna, o céu estava mais claro. A névoa dispersa, como se até a natureza reverenciasse o momento.
Cristal saiu na frente, arco nas costas, o símbolo ainda visível em sua armadura. Os soldados a seguiam. Não por ordens. Por convicção. Erik andava ao seu lado, como igual. Mas no fundo, sabia: ela era a luz que eles seguiriam.
Naquela tarde, em silêncio, nasceu uma lenda. Não porque alguém a proclamou. Mas porque todos a testemunharam. E ninguém jamais se esqueceu.
A caverna ainda ardia na memória de todos. Não pelo calor das chamas, mas pela luz que se acendeu sem ninguém esperar. O retorno de Cristal com o arco forjado no fogo do dragão não foi apenas um triunfo — foi uma mudança de era. E a corte, acostumada a ignorar sua presença, agora precisava encará-la como o que ela havia se tornado.
O símbolo de Sagitário ainda brilhava em sua armadura quando Cristal cruzou os portões do castelo. Era começo da noite. O céu, encoberto de nuvens, mantinha a cidade sob um tom de cinza que parecia não querer ir embora. Servos interromperam tarefas. Guardas se entreolharam em silêncio. Um velho nobre que passava desviou o olhar, como se visse algo que não devia ser testemunhado.
O arco repousava em suas costas — coberto por um pano simples, mas mal disfarçado. Erik caminhava ao seu lado. Não como guarda. Nem como oficial. Como testemunha. Alguns soldados do destacamento os acompanhavam, ainda atônitos. Ninguém havia dormido desde que voltaram. E ninguém conseguia descrever em palavras o que viram na caverna.
A lenda havia nascido… e os olhos de Sagittaria ainda tentavam se ajustar à luz.
No salão principal do castelo, sussurros percorriam os corredores antes mesmo que Cristal chegasse ao quarto. Um guarda comentou com outro: “Dizem que a armadura dela queimava… mas não com fogo.” Uma criada jurava ter visto um clarão atravessar o céu horas antes. Alguns falavam em bênção. Outros, em maldição.
Ao amanhecer, uma convocação oficial foi emitida:
“Conselho Velado. Reunião extraordinária.
Assunto: A manifestação do símbolo de Sagitário.
Presença solicitada: Senhorita Cristal. Oficial Erik. Ordem real.”
O salão do conselho era uma sala antiga, com teto alto, paredes de pedra escura e tapeçarias desgastadas pelo tempo. Uma grande mesa oval ocupava o centro. Doze cadeiras. Apenas nove ocupadas.
Na cabeceira, Conselheiro Orvan, já de cabelos brancos e olhos fundos, lia um pergaminho antigo. Seus dedos tremiam levemente, mas sua voz, quando falou, era firme.
— A última vez que este símbolo apareceu, senhores… foi em tempos de guerra. E mesmo naquela época, muitos disseram ser apenas mito.
À sua esquerda, Lady Celthra, envolta em um manto azul de seda leve, sorria com os olhos.
— Ora, Orvan… mito ou não, o povo já escolheu o que acreditar. A pergunta é: o que faremos com isso?
— Não estamos aqui para decidir o que fazer com pessoas, Lady Celthra — retrucou um homem de voz grave. — Estamos aqui para proteger o reino.
Era Lord Hestian. O ex-general de olhar pétreo, conhecido por sua rigidez e desconfiança com qualquer força não militar.
— E proteger o reino — continuou ele — significa entender se estamos diante de um sinal divino… ou de um risco político disfarçado de profecia.
— Isso é um insulto — disse Erik, levantando-se. — Estive lá. Vi com meus próprios olhos. Aquilo não foi encenação. Não foi teatro.
Hestian ergueu uma sobrancelha.
— E como chamaria um clarão que explode do peito de uma jovem nobre — que nunca comandou nada — enquanto segura uma arma que ninguém conhece?
Erik se manteve em pé.
— Chamaria de verdade.
Um silêncio tomou a sala. Apenas o tilintar de um copo, longe, ecoou nas pedras.
Na lateral da sala, Problemática permanecia em pé, próxima às colunas. Não fazia parte do conselho, mas era autorizada a ouvir — um privilégio raro, que ninguém ousava contestar.
Seus olhos estavam semicerrados, analisando tudo em silêncio.
Não olhava para Cristal.
Olhava para quem estava reagindo demais.
Cristal só falou quando solicitada. Sua presença, mesmo silenciosa, causava desconforto entre os conselheiros. Mas sua voz, quando veio, soou limpa, baixa, certeira.
— Eu não vim aqui para pedir que acreditem.
—Vim apenas para dizer o que aconteceu.
Orvan a observou com olhos antigos.
— O símbolo permanece?
Cristal se levantou e soltou a fivela da capa. A armadura por baixo cintilava. E sim — o símbolo de Sagitário ainda estava lá. Como uma marca sagrada gravada no próprio aço.
Celthra se inclinou levemente.
— Poético… e perigoso. Marcas assim costumam atrair mais do que fiéis. Costumam atrair… inimigos.
— Eles virão de qualquer forma — disse Erik. — Mas agora, ao menos, saberão que temos uma luz para responder.
Hestian franziu o cenho.
Cristal recolocou a capa. Caminhou até o centro da sala. Olhou cada um nos olhos. Sem arrogância. Sem medo.
— A flecha foi disparada. O reino pode escolher se vai recuar… ou caminhar com ela.
Ela virou-se.
Não pediu licença.
Saiu.
Do alto de uma das janelas da torre oeste, Problemática observava a movimentação no pátio interno. Seus olhos estavam fixos no céu.
Algo no ar havia mudado.
A luz havia sido acesa.
E agora… as sombras estavam despertando.
Nem todos no castelo viram a luz com admiração. Para alguns, aquilo era um presságio. Para outros, uma ameaça. Com a revelação da verdadeira portadora do arco, as máscaras começaram a se mover. E no salão do conselho, onde se diziam palavras nobres com intenções turvas, os jogos começaram.
O Salão Velado não tinha janelas. Suas paredes eram de pedra negra, ornadas por tapeçarias com símbolos que ninguém mais ousava usar. O teto alto desaparecia nas sombras, e o chão refletia apenas a luz tênue de três lanternas suspensas — sempre três, nunca mais. As cadeiras ao redor da mesa redonda eram todas iguais, mas o poder ali nunca foi equilibrado.
Ali, não havia títulos.
Apenas vozes.
— Se aceitarmos a presença dessa luz, abriremos uma porta que jamais poderá ser fechada — disse Lord Hestian, apoiando as mãos pesadas na mesa. — Não se trata de fé ou de coragem. Trata-se de controle.
Lady Celthra cruzava os dedos finos com elegância estudada.
— Se abrirmos a porta com cuidado, talvez possamos escolher o que entra por ela — disse, quase sorrindo.
Conselheiro Orvan estava em silêncio, o que nunca era bom sinal. Quando finalmente falou, a sala pareceu encolher ao redor de sua voz cansada.
— Já tivemos símbolos antes. Estrelas cadentes, espadas que brilharam ao luar, árvores que sangraram. Nenhum durou. Este... está durando.
A reunião não era pública. Nem registrada. Era o conselho dentro do conselho. Aqueles que sabiam o que os outros apenas suspeitavam.
O símbolo de Sagitário havia se manifestado.
Não em pedras.
Não em céu.
Na armadura de uma jovem.
— Ela não foi coroada — disse Hestian. — Não foi escolhida. Foi empurrada por uma coincidência mágica que ninguém entende.
— E no entanto, o povo fala seu nome nas ruas como se fosse a própria esperança — disse Celthra. — Ou talvez… o medo disfarçado de esperança. Dá no mesmo.
— Ela não fez nada além de sobreviver a uma batalha — rebateu Hestian. — E ainda assim, temos soldados dizendo que viram “a luz sair de seu peito”.
— Porque viram. — A voz de Orvan era baixa, quase um sussurro. — A questão não é mais se o símbolo apareceu. A questão é: o que fazemos com isso?
Um silêncio desconfortável tomou conta da sala.
— Há rumores — disse Celthra, como quem comenta sobre o clima. — De que Erik está reforçando patrulhas sem consultar o conselho. Dizem que cavaleiros jovens pedem para serem designados às ordens de Cristal. Que começaram a chamá-la de "portadora do arco". Não oficialmente, claro.
— Por enquanto — acrescentou Hestian, sombrio.
Então, a porta se abriu.
Não foi com pressa. Nem com estardalhaço.
Problemática entrou com passos calmos, sozinha.
Não havia sido convidada — mas tampouco alguém a impediu.
Vestia o traje escuro de sempre, cabelos soltos, olhos impassíveis.
— Vocês discutem luz… mas esquecem do que há atrás do véu.
Ninguém respondeu.
— Este conselho — disse, olhando cada um nos olhos — foi criado para proteger o povo do caos. Mas em algum momento, passou a proteger o próprio poder.
— Está nos acusando de quê, arcana? — disparou Hestian, com desprezo.
— De esquecerem o que o véu realmente é.
— E o que seria?
Problemática sorriu pela primeira vez.
— Uma fina cortina entre aquilo que vemos… e o que escolhemos não ver.
Ela se virou e saiu, deixando a sala em silêncio absoluto.
...
Mais tarde, no mesmo dia, Cristal foi convocada novamente ao Conselho — dessa vez, oficialmente. A atmosfera era diferente da reunião anterior. Não havia mais choque. Agora havia medo contido.
Erik permaneceu em pé ao fundo da sala.
Cristal se aproximou da mesa e retirou a capa. O símbolo de Sagitário ainda estava lá, mais sutil agora, como se soubesse que não precisava brilhar para ser lembrado.
— Desejamos entender seu papel nesta nova fase — disse Orvan, sem ironia.
— Meu papel não mudou — respondeu ela. — O mundo é que começou a me olhar.
Celthra inclinou levemente a cabeça.
— Você sabe que isso pode desequilibrar o reino?
— O reino nunca foi equilibrado — respondeu Cristal. — Apenas silenciado.
Orvan suspirou. Hestian cerrou os punhos. Celthra sorriu, discreta.
Cristal, então, deu um passo à frente.
— Eu não sou ameaça. Eu sou resposta. Se não conseguem ouvir, é porque falam alto demais entre si.
Ela se retirou.
Ninguém a impediu.
...
Na varanda da ala oeste, Problemática observava o céu noturno.
A lua estava pálida, como se o véu do mundo começasse a afinar.
A luz havia surgido.
E as vozes atrás do véu… começavam a sussurrar mais alto.
O tempo avançou desde a primeira luz. Depois do dragão, do arco, dos conselhos velados e das missões solitárias, o reino parecia respirar. Mas não em paz — e sim em alerta.
Problemática sentia isso antes mesmo que os outros admitissem: algo se movia sob o chão e sobre os sonhos. E agora, o presente voltava a cobrar atenção.
As noites estavam mais longas. O silêncio, mais carregado. E nas madrugadas sem lua, as vozes voltaram a chamá-la.
A noite caiu sobre Sagittaria sem brisa, sem estrelas.
No alto da torre sul, onde os ventos costumavam assoviar entre as janelas velhas, o silêncio era absoluto. Tão absoluto que parecia ter forma. Peso. Temperatura.
Problemática sentia.
Sozinha, caminhava por corredores que poucos ainda se lembravam que existiam. Suas botas pisavam devagar, mas não por cautela — era o respeito antigo de quem sabia onde estava pisando.
Passou por tapeçarias cobertas de poeira, por espelhos manchados onde reflexos não devolviam o que mostravam, por símbolos gravados em pedra que nenhum soldado saberia decifrar.
No final do corredor, uma porta arqueada. Madeira escura, trinco de bronze, sem fechadura. Ela apenas encostou a palma da mão.
A porta se abriu.
Dentro, o santuário velado — um dos lugares mais antigos do castelo, talvez mais antigo que o próprio trono.
Havia círculos no chão feitos com pedras brancas, símbolos arcanos no teto esculpidos por mãos que não tremiam, e uma luz difusa que não vinha de lugar algum, mas preenchia tudo. E no centro, um espelho antigo, com moldura dourada corroída pelo tempo.
Problemática se ajoelhou.
Fechou os olhos.
E ouviu.
“Já caminham entre as névoas...”
A voz era fina, mas profunda. Nem masculina, nem feminina. Nem viva, nem morta.
“A flecha despertou o que dormia…
e o que dorme no Véu não esquece.”
Problemática abriu os olhos. Não havia ninguém. Mas a temperatura havia mudado. O ar estava mais denso, como se estivesse sendo observado por olhos sem forma.
Ela não respondeu. Não se assustou.
“Você viu, arcana.
Viu antes de todos.”
“E silenciou.”
Ela inclinou a cabeça levemente.
— Porque o que vi… ainda não tinha nome.
O espelho tremeu. Uma rachadura fina atravessou sua superfície. Mas não quebrou. Não ainda.
...
Mais tarde, na biblioteca oculta sob a ala oeste, ela revisava manuscritos esquecidos. Pergaminhos de linho, tinta azul-marinho desbotada, assinaturas que desapareceram da história.
Um dos nomes ali escritos, ela conhecia.
Era o dela. Mas datado de muito antes do seu nascimento.
Fechou o livro. Encostou os dedos na testa.
Do lado de fora, ninguém saberia.
Mas o Véu havia se movido.
E quando o Véu se move, o que está por trás começa a procurar brechas.
Enquanto isso, nos limites do reino, algo se erguia na floresta úmida onde mensageiros não voltavam. Entre cipós e ossos, uma criatura se arrastava de volta ao mundo. Não andava. Deslizava. E sussurrava.
Não tinha nome. Não tinha alma.
Mas ouvia a luz — e a odiava.
...
Na torre, Problemática acendia uma vela azul, feita com resina do norte.
— O conselho está cego, Cristal… — murmurou, mesmo estando sozinha.
— ...e o que vem agora não é político. É antigo.
Ela olhou para a janela.
A lua não estava mais lá. Só o véu.
Ela permaneceu imóvel, ouvindo o que os outros não ousavam escutar. A pedra fria sob seus pés parecia pulsar. O ar, denso demais para ser apenas vento.
Naquela noite, Problemática não encontrou respostas. Mas entendeu o bastante para saber: o que vinha adiante não era uma continuação. Era o começo de outra história.
Antes das vozes no véu. Antes do retorno de Jean. Antes que a escuridão soprasse nas muralhas de Sagittaria… houve uma escolha.
Não diante do povo. Mas entre dois corações ainda marcados pela dúvida, e pela chama recente do que estavam se tornando.
O céu de Sagittaria estava coberto por nuvens baixas, e a torre mais alta do castelo era açoitada por ventos frios do sul. Cristal treinava sozinha, seu arco repousando ao lado da parede de pedra. O mesmo arco que agora se unira ao seu nome nas lendas que ainda nem tinham sido contadas.
Erik se aproximou em silêncio, como fazia desde que eram jovens. Tinha os cabelos presos, a capa de oficial dobrada sobre o ombro e o semblante carregado por pensamentos que ele raramente deixava escapar.
— Você deveria descansar, Cristal — disse ele, observando os alvos cravados por flechas douradas.
— E você deveria parar de me observar como se eu fosse quebrar — ela respondeu, sem virar o rosto.
Erik riu brevemente.
— Você se partiu várias vezes… e nunca quebrou.
Cristal soltou o arco e encarou o horizonte, onde as montanhas tocavam o céu. Por um instante, a armadura parecia leve demais para o peso que ela carregava.
— Estão começando a falar — murmurou. — A respeito do arco. Do símbolo. De mim.
Erik aproximou-se mais, e dessa vez, não hesitou em sentar-se ao lado dela no parapeito de pedra.
— O reino precisa de algo em que acreditar. E nós… — ele parou, escolhendo bem as palavras — talvez sejamos tudo o que lhes resta.
Houve silêncio. Um vento cortante passou entre eles, como se o próprio tempo suspendesse a respiração.
— Erik — ela disse, voltando o olhar para ele —, se tudo isso for verdade… se houver mesmo um destino nos observando… você estaria ao meu lado?
— Sempre estive — respondeu, sem hesitação. — Mas isso não é sobre destino. É sobre decisão.
Ele então estendeu a mão e revelou, sobre um pedaço de tecido escuro, um pequeno fragmento de metal dourado, ainda chamuscado, que ele havia recolhido após a batalha contra o dragão.
— O que sobrou do fogo ainda pode ser forjado. Talvez o arco tenha escolhido você… mas essa espada — disse ele, firme — eu vou escolher forjar por mim mesmo.
Cristal sorriu. Pela primeira vez em dias, parecia leve. Mas havia lágrimas nos olhos. Não de fraqueza — de alívio.
— Que nome daria a ela?
Erik fitou o fragmento brilhando sob o céu nublado e respondeu:
— Ainda não sei. Mas quando ela estiver pronta… ela será um reflexo do que decidimos aqui.
E assim, sem coroas, cerimônias ou aplausos, começou a história que mudaria o reino. Não com guerra, mas com escolha. Naquele silêncio entre decisões e incertezas, algo invisível se selou. Porque a flecha já havia sido escolhida. E a espada… logo teria um nome. O que nenhum dos dois sabia — é que o mundo já os observava.
Fim do livro I ...
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